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Compositores analisam sua obra produzida em tempos de pandemia

A convite do 'Estadão', Zélia Duncan, Zeca Baleiro, Roberta Campos, Sérgio Britto e Francis Hime falam sobre o exercício de compor sob o efeito da quarentena; veja vídeos exclusivos com músicas feitas por eles neste período

Por Adriana Del Ré
Atualização:

Assim como outros artistas, os compositores têm agido, e reagido, de formas diferentes neste período de pandemia. Há quem esteja paralisado em seu processo de criação nestes tempos difíceis. O que é legítimo. Mas há também quem busque refúgio – e força – na música para enfrentar essa fase árida. O que é compreensível. A convite do Estadão, Zélia Duncan, Zeca Baleiro, Roberta Campos, Sérgio Britto e Francis Hime, que ocupam esse segundo grupo, falam sobre o exercício de compor sob o efeito da quarentena, e como isso tem refletido em sua obra. Apesar dos pesares, os cinco, nomes respeitados da música brasileira, continuaram dedicados à composição. Em geral, são canções que não falam literalmente sobre a quarentena, mas a gangorra de sentimentos provocada pela pandemia se traduziu em canções de amor, melancólicas ou mesmo mais esperançosas. 

Zélia Duncan planejalançar disco com Juliano Holanda, com composições feitasneste período. Foto:Roberto Setton 

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Quarentenada em São Paulo, Zélia Duncan entrou em isolamento logo na sequência de ter seu show no Rival cancelado por causa do coronavírus. Aliás, ela recebeu a notícia no próprio teatro, pouco tempo antes de entrar no palco. Mesmo sem público, Zélia e a banda fizeram a apresentação, que foi gravada e transmitida online. “Foi muito emocionante e muito angustiante”, ela lembra. Apesar do baque, Zélia retomou suas composições rapidamente. “Gosto muito de ler e escrever, e aí as parcerias começaram a aparecer. Uma das primeiras foi com Xande de Pilares e a gente fez um samba muito bacana, chamado A Dor Tem Que Valer.” 

Ela emendou outras parcerias, com compositores como Marcos Valle, Ivan LinsLucina, Moska e Leoni. Mas houve uma parceria em especial, com Juliano Holanda, que rendeu mais de 30 músicas durante este período e a ideia de um disco assinado pelos dois, previsto para 2021 – e que fará parte das comemorações de 40 anos de carreira de Zélia. “Assim como tive aquele espasmo com Ana Costa e nasceu o álbum Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz, esse é um disco que vai ser um documento dessa época para nós. Estamos já na boca de começar a trabalhar. Comprei um microfonezinho para gravar em casa, também é uma coisa nova para mim. Tenho feito uns violões em casa, vozes em casa. Então, foram muitas frentes abertas nesse lugar de ficar sozinha e se inventar todo dia”, diz. “E o artista precisa se perdoar quando não faz nada, a gente se culpa demais. O ócio tem seu lugar na vida da gente.”

E que tom ganharam as músicas desse cancioneiro do isolamento? “Há de tudo: as canções mais profundas, as mais leves, as de amor. Esse negócio da montanha-russa figura bem o que todos nós estamos vivendo. De você entrar nesse carrinho e não saber onde isso vai dar. Claro que viver já pressupõe o inesperado, mas a gente está vivendo o inesperado num momento de abismo. A gente está caindo, o Brasil caiu e ainda não parou. E a gente se pergunta: onde é que isso vai dar? E o papel do artista é perguntar. Então, esse disco vai perguntar e com desejo de responder a algumas coisas, e de rastrear até a beleza desses momentos.” 

Zeca Baleiro fez várias composições com o amigo Chico César. Foto:Silvia Zamboni 

Zélia também compôs com Zeca Baleiro, seu antigo parceiro musical. E a lista de parcerias de Baleiro neste período também é extensa: além de Zélia, inclui nomes como Wado, Vinícius Cantuária, Flávio Venturini, Chico César e poeta arrudA. “Estou compondo bastante, porque o isolamento trouxe um tempo mental que há muito tempo a gente não experimentava. O trabalho do artista é muito impulsionado por esse tempo para pensar, para criar, para deixar que as coisas aflorem”, diz o cantor e compositor.

Mas foi com Chico César que Baleiro produziu o material mais encorpado dessa safra de canções, que os dois pretendem registrar em disco. “Apesar de a gente ser contemporâneo e amigo, a gente nunca compôs muito junto. Cada um tinha seu próprio projeto. Então, veio essa enxurrada, foi uma retomada da parceria.”

Fazendo um panorama dessas composições feitas na quarentena, Baleiro fala sobre os caminhos que seguiram letras e melodias. “Há um pouco de melancolia em algumas canções; também fala um pouco da situação, uma crônica mais das emoções, das transformações pessoais que a pandemia e a quarentena foram naturalmente causando nas pessoas”, diz. “Mas, ao mesmo tempo, as últimas que fiz têm essa coisa esperançosa, porque acho que o artista é também um espelho. É importante cantar a esperança, a resistência, as utopias.” 

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Novas canções deRoberta Campos serão lançadas em álbum e tambémEP. Foto: Marina Campos 

Roberta Campos tinha planos de entrar em estúdio, em abril, para gravar seu novo álbum, quando a pandemia avançou pelo País. “Desse disco que eu já tinha feito todas as músicas, acabei mudando três canções dele (por outras) que compus durante este período (de quarentena)”, conta a cantora e compositora, que conseguiu gravar no mês passado, no Rio, o álbum previsto para o ano que vem. 

Mas como seu processo de composição não cessou, outras canções nasceram nos últimos meses. E, assim, outras cinco músicas farão parte de um EP, Só Conheço o Mar, que sairá em 11 de dezembro. “Ele fala mais deste período, traduz mais meu sentimento dentro do isolamento e da pandemia”, afirma. “Faz tempo também que não gravo um disco. Meu último álbum saiu em 2015, o Todo Caminho É Sorte, e daí resolvi lançar agora esse EP, até para dar um frescor para a vida, para a minha música, para este momento. Costumo fazer músicas mais leves. É uma coisa mais introspectiva, mas, ao mesmo tempo, tem uma positividade.” 

A música sempre salvou Roberta, como ela própria diz. E agora não foi diferente. “De momentos difíceis, de dores, sempre tirei um lado bom e transformei aquilo. É um momento de resiliência, de se reinventar. Mesmo sendo um negócio tão pesado, você vê uma luz no fim do túnel, e é mais ou menos por esse caminho que vai o EP. Inclusive, a última faixa se chama Tudo Vai Ficar Bem. É o que eu acredito, é o que eu penso.”

Três composições feitas por Sérgio Britto na quarentena estãoem seunovo álbum solo. Foto: Tony Santos 

Também com um novo disco sendo arquitetado, Sérgio Britto, do Titãs, já tinha boa parte das músicas do repertório quando chegou a pandemia. Três canções acabaram sendo compostas durante a quarentena e entraram em seu disco solo Epifania, que será lançado em compactos, a cada três meses – o primeiro, com Epifania no lado A e Tradição no lado B, chegou às plataformas digitais na sexta, 6.

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Foi lançado ainda o clipe de Epifania, que Britto gravou no Litoral Norte de São Paulo, onde está confinado, registrando um ambiente sob o impacto destes tempos, de praia vazia e natureza evidenciando sua força. “Achei que não fazia sentido ficar esperando que tudo voltasse à normalidade mais normal, e que, à medida que eu conseguisse fazer as coisas, eu iria fazer, para não ficar no limbo.”

Britto não parou de compor. “Não compus sobre a pandemia, não me deu essa vontade: ‘Vou falar sobre isso’. Eu tinha outras coisas que achava mais interessantes e mais verdadeiras.” Ao todo, são 12 canções, que tratam de uma variedade de temas e são embaladas por uma sonoridade que dá identidade aos projetos solos do músico, com pop, bossa nova e MPB. Um dos destaques desse novo trabalho, Epifania foi finalizada durante este período. “Não fiz pensando neste momento, mas ela fala de transformação, dessa coisa de você adequar e descobrir a essência das coisas.”

Francis Hime com a mulher Olivia, parceira na nova canção'Mar Enfim'. Foto: Nana Moraes 

Compondo intensamente, Francis Hime viu seu leque de parceiros na música popular aumentar durante a quarentena. Estreou parcerias com Zélia Duncan, Moacyr Luz, Paulo Mendonça, Pierre Aderne e Flávio Marinho. Já com a antiga parceira musical, a mulher Olivia Hime, compôs Mar Enfim, “uma valsa lenta bastante romântica que ela letrou”.

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“Fiz também uma música com Jorge Fernando, um fadista de Portugal. Ele fez um poema chamado Anjos Secretos, que eu musiquei, sobre os cuidadores da saúde”, diz Hime. Foi a única canção que falou sobre pandemia. “Fiz um contraponto: em vez de fazer uma música melancólica, triste, fiz uma música vigorosa.” 

Dos parceiros, Hime recebe letras variadas: “Mais contidas, mais melancólicas, algumas mais engraçadas”. “E as músicas que eu faço também são muito variadas.” Nestes tempos difíceis, a música funciona como refúgio. “Até de uma certa forma explica por que estou compondo tanto. É uma espécie de salvo-conduto para enfrentar este período.” 

Veja vídeos exclusivos gravados pelos compositores para o 'Estadão':

As letras das músicas da quarentena:

Eu e Vocês (Juliano Holanda e Zélia Duncan)

Uma daquelas Pra suavizar a alma. Uma tranquila Pra reconquistar a calma. Uma daquelas doces Pra detonar o amargo Uma suave Feito brisa ao cair da tarde. Uma balada simples, Um amigo em casa. Balanço manso voa No quintal risadas. Uma daquelas raras Pra aquecer saudade Uma que chame nosso nome Feito mãe, feito vontade. Vontade de cantar Num coro essa canção Com voz de coração Eu e vocês Vontade de cantar No corpo essa canção Com voz de multidão Eu e vocês

Distantes e Tão Próximos (Zeca Baleiro e arrudA)

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distantes e tão próximos o amor em tempos ásperos e o que dirão os astros tudo parece tão difícil o amor em cada passo e não faltará espaço distantes e tão próximos o amor em tempos áridos, despidos até os ossos de armaduras e outros artifícios distantes e tão próximos cantar um novo início

Meu Amor É Seu(Roberta Campos)

Seu rosto, meu caminho colorido Seguro firme com as minhas mãos Teus olhos me olham Com atençao A sua voz me guia e seu perfume Me faz sentir a vida em um milhão de segundos A noite já caiu  E eu tô aqui Me beija, te quero bem perto Me sinta, me ame Meu universo é vc, meu universo é vc Meu amor, meu amor Meu amor é seu Meu amor, meu amor Meu amor é seu A sua voz me guia  E seu perfume me faz sentir a vida em um milhar de segundos A noite já caiu  E eu tô aqui Me beija, te quero bem perto Me sinta, me ame Meu universo é vc, meu universo é vc Meu amor, meu amor Meu amor é seu Meu amor, meu amor Meu amor é seu

Epifania (Sérgio Britto)

Abra os olhos, não espere mais Feche a porta, não olhe pra trás Abra os olhos e diga adeus Não esqueça nada que é tudo seu E não se esconda mais Em meio ao lixo que o mar traz E não se esconda atrás De estrelas que não existem mais E se for amor Como há espinhos na flor E se for amor Será sempre amor E se for amor Como há espinhos na flor E se for amor Sempre haverá dor Abra os olhos, não pense mais Feche a porta, não diga aonde vai Abra os olhos e entregue a deus Não esqueça nada que é tudo seu E não se esconda mais Na sombra que o seu muro faz E não se esconda atrás De um mundo que não existe mais E se for amor Como há espinhos na flor E se for amor Será sempre amor E se for amor Como há espinhos na flor E se for amor Sempre haverá dor

Mar Enfim (Francis e Olivia Hime)

Mar Dos degredos Dos presságios Heresias Nas coxias do tempo Teci teu manto Mar - tantas eras - Leito de trevas E em vão Rasgo o peito e tinjo o mar Entrego a vida por um grão Sacio a sede no teu sal Imprudentemente espero Junto a margens traiçoeiras Mar de tontas caravelas Dos amores naufragados Mar - enfim Chamarás por mim? Soberanamente Mar

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