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O rap de batom pede passagem

Após mais de uma década de batalha, aos poucos, as meninas do rap conquistam espaço com suas letras sobre a vida da mulher na periferia. Denúncias, sim, mas sem perder a feminilidade

Por Agencia Estado
Atualização:

Maria Cristina Borges da Silva é a rapper Tina Atitude. Ela tem 29 anos, mora em uma casa na Vila Maria, zona norte de São Paulo. Tem também um Fiat Uno. Tina vive com o filho Cristiano Jr, de oito anos e se sustenta graças a dois empregos como orientadora em projetos educacionais e uma modesta pensão do ex-marido, o DJ Alpiste. Foi Tina quem pediu a separação, no final do ano passado. Se no começo ela abria os shows do companheiro, com o tempo, Tina passou a roubar a cena. E o ciúme de DJ Alpiste pôs um ponto final no romance de dez anos. Maria Cristina não conta com nenhuma ajuda de babás, muito menos faxineiras. Mesmo assim, a moça ainda agrega em sua rotina outras duas atividades, para ela, vitais: um cooper religiosamente às 5h da manhã, todos os dias da semana, para manter a forma. E, principalmente, a carreira de cantora. No final do ano passado, após nove anos de batalha no mundo do rap, ela lançou o primeiro CD, Tina Atitude. Suas músicas ainda não tocam nas grandes rádios comerciais, mas começam a ser veiculadas em emissoras pequenas. Tina tem feito alguns shows. "Média de três por mês!", vibra, orgulhosa. E completa, na mesma entonação: "Tenho dado até autógrafo nas ruas". A trajetória de Tina reflete a luta das mulheres que se aventuram pelo caminho do rap. Ao contrário dos Estados Unidos, o ritmo ainda não tem uma grande aceitação comercial aqui no País. E se os versos apresentados pelos rapazes hoje estão à margem da mídia brasileira, as rimas entoadas pelas "minas do rap" poderiam ser classificadas como "a margem da margem". Teorias sobre tal discriminação à parte, as meninas da rima seguem esperançosas. "Acredito que cada vez mais estamos conquistando nosso espaço, nossa forma de fazer música, bem diferente do estilo dos homens. Tenho muita esperança que um dia vamos conquistar também nosso espaço na mídia. É o rap de batom!", vibra a vaidosa Tina. Nas rimas das meninas, há alguns diferenciais em relação aos protestos dos garotos. Aliás, existem até correntes entre o próprio movimento rap feminino. "Eu, por exemplo, não quero saber de protestos. Minha música é para cima. De triste já basta a vida", diz Tina. MC Regina, 28 anos, - três empregos, moradora do Capão Redondo, mãe de dois filhos e grávida de sete meses - concorda. "É legal a gente ter um diferencial em relação aos homens, protestar contra o machismo que existe por aí. Mas com muito charme, sempre com um alto-astral". Com um "e aí, galera", sacolejando o corpo (e a barriga) no ritmo das batidas, MC Regina anima platéias há mais de 15 anos. "Nas primeiras vezes em que subi em um palco, os caras ficavam fazendo ´fiu-fiu´. Hoje, não. Rola o maior respeito", diz. E completa: "Apesar disso, meu marido morre de ciúmes e raramente assiste às minhas apresentações." Enquanto Tina e MC Regina fazem a linha "rap de batom", Luna - na verdade, Luana Rabetti - 22 anos, opta por um caminho completamente oposto. Roupas larguíssimas, voz bastante grave, nada de maquiagem no rosto e semblante fechado. Ela é a líder do grupo Livre Ameaça, que entoa versos como "Essa é a Era do Apocalipse/Eu nasci na periferia/ Quantos manos se foram?/Periferia, somos o alvo". Fora do palco, Luna abre um sorriso e revela uma voz mais meiga. Diz que se sente feliz, recém-casada com o também rapper Nenê do grupo Periféricos. E que acabou de ter um bebê. "Meu pai lutou na ditadura. Ele dizia que entrou na luta para garantir um futuro bom para mim. Mas esse futuro bom não veio. Então hoje, canto, faço letras de denúncia na esperança que minha filha tenha um futuro bom". Sobre o estilo sisudo, Luna explica que "é para que as pessoas prestem atenção nas minhas letras e não nas minhas pernas." A brasiliense Veronika - na verdade, Verônica Diano Braga, 21 anos - adota um meio termo entre Luna e Tina. Balançando as longas tranças enfeitadas por laços coloridos, Veronika canta versos como "A garota fica grávida/E o cara deixa na mão/A casa vai para o chão". Veronika mesmo é mãe de uma menina de três meses que é criada somente por ela e pela avó (aliás, o fato de a maioria ser mãe solteira é algo muito comum entre as meninas do rap). No repertório, Veronika também narra a história de Maria Antonieta. "Mas você não conhece a história dela?!", surpreende-se Veronika ao ser perguntada sobre a trajetória da personagem. "Ela foi uma negra que amamentou 12 crianças brancas. Depois, foi morta por elas porque ficaram com vergonha de um dia terem dependido de uma negra." E Veronika finaliza: "Só por poder denunciar essas histórias, tentar melhorar o cotidiano, já vale a pena enfrentar o machismo e o mercado para fazer rap. Tá ligada?"

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