Nelson Freire: Um ano após sua morte, legado do pianista só cresce; ouça gravações inéditas e raras

Homenagens incluem discos com gravações inéditas, livros, resgate de documentos e até um álbum gravado aos 6 anos por Nelson Freire

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Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio

O tempo passou rápido. Há um ano, o mundo musical brasileiro amanhecia com uma notícia devastadora: Nelson Freire estava morto. O pianista tinha 77 anos. Estava distante dos palcos. Ele sofrera em 2019 uma queda durante uma caminhada no calçadão em Ipanema, fraturando o braço. O retorno aos palcos estava marcado para 2020, mas a pandemia adiou a volta do artista, que não pode se despedir do público.

Mas, um ano depois, a memória das grandes interpretações de Nelson Freire segue fresca – e tem se tornado ainda mais viva por conta de uma série de iniciativas que têm ampliado nossa percepção a respeito de sua personalidade artística, com o lançamento de gravações inéditas e a revelação de documentos preciosos de seu acervo.

Nelson Freire em 2000 Foto: Otavio Magalhães/Estadão

Em 2021, a Decca lançou a coletânea The Art of Nelson Freire, com faixas dedicadas a Bach, Debussy, Chopin, Schumann, Villa-Lobos, extraídas de seus discos gravados nos últimos dez anos para o selo inglês. Agora, chega ao mercado Memories, álbum duplo com gravações inéditas realizadas entre 1970 e 2019, a maior parte delas ao vivo.

São preciosidades, como seu primeiro registro do Concerto para piano nº 2 de Brahms com a Sinfônica da Rádio de Frankfurt e o maestro Horst Stein. Com o mesmo maestro, há a gravação do Concerto para piano nº 1 de Bartók, desta vez com regência de Horst Stein. E não menos cativante é seu registro do Concerto para piano nº 4 de Beethoven, com a Orquestra da Rádio de Stuttgart e o maestro Uri Segal.

Nelson Freire e o disco gravado aos 6 anos

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O Instituto Moreira Salles, por sua vez, colocou à disposição dos ouvintes de forma gratuita em seu site uma raridade: um disco gravado por Nelson Freire aos seis anos de idade, quando mudou-se de Boa Esperança, no interior de Minas Gerais, para o Rio.

Àquela altura, já estava claro para a família que o talento do pequeno pianista precisava de novos ares para se desenvolver. Daí a mudança para a cidade, a fim de encontrar novos professores. E o pai de Freire, ao chegar à então capital do país, levou o filho para um estúdio, onde ele gravou um conjunto de peças de sua autoria.

O álbum permite um olhar para a infância do pianista. Ao mesmo tempo em que seguia seus próprios estudos, Freire tinha como hábito ouvir a irmã Nelma ao instrumento. E as peças foram provavelmente inspiradas no repertório que então descobria pelas mãos dela, assim como em transmissões de rádio. São elas Brinquedo de criança, Noturno nº 1, a valsa Saudade de Boa Esperança e o bolero Dentinho de ouro.

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Esse registro ficou guardado por 70 anos na casa do pianista dentro da capa de um outro LP, da Orquestra Nacional da França. Mas um pequeno adesivo trazia os dizeres “Nelson Freire. Composições aos 5 anos. Gravação de 1950.”

Preciosidades de Nelson Freire

O material foi cedido ao IMS pela família do compositor e por seu assistente de décadas, Bosco Padilha, que tem levantado o material do acervo de Freire: são partituras, discos, cartas, anotações, fotos, cartões postais, que começam a chegar ao público em especial por conta do trabalho do Instituto Piano Brasileiro.

O instituto foi criado pelo pianista Alexandre Dias em 2015 e trabalha sem apoio oficial, apenas com os valores obtidos com um grupo de financiadores particulares por meio de assinaturas anuais. Sua atuação é marcante. Dias tem recebido acervos de grandes pianistas brasileiros, que recupera, digitaliza e coloca à disposição do público na internet, de maneira gratuita.

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Freire chegou a fazer um recital para o instituto, preocupado em ajudar financeiramente, com o dinheiro dos ingressos, a iniciativa. Natural, portanto, que o IPB seja o destino de alguns documentos preciosos.

Um exemplo: entre o material há cartas de Nise Obino e Lucia Branco, professores de Freire, lidas por parentes das artistas em vídeos que mostram os documentos originais. Outra preciosidade é o caderno de estudos utilizado por Freire aos oito anos de idade. Dias o considera “um dos documentos mais importantes da história do piano brasileiro”. “Ao longo das aulas, que duravam uma hora, podemos ver como Lucia Branco distribuía o estudo técnico com o estudo de repertório, e como passava pelas etapas de leitura, interpretação (colorido), pedalização, e memorização.”

Nelson Freire ao piano, em 1959, em Boa Esperança. A foto integra o livro A Pessoa e o Artista, de Ricardo Fiuza Foto: Reprodução do livro A Pessoa e o Artista

Além disso, o canal do YouTube do instituto está repleto de gravações inéditas, feitas ao vivo por rádios de todo o mundo, ou pelo próprio pianista. Entre elas, Freire tocando Beethoven em 1957, aos 12 anos; o registro de um recital em Viena, em 1964, com obras de Schumann, Chopin e Camargo Guarnieri; um recital ao lado do pianista Antonio Guedes Barbosa, em São Paulo, em 1971; um programa Brahms com o Quarteto Guanabara (Petrópolis, 1981). A lista de preciosidade inclui ainda gravações de pianistas que Freire tanto admirava, como Guiomar Novaes: há entre o material um áudio de sete minutos em que ela ensaia uma peça de Liszt.

Livro

Na França, será lançado no final deste mês pela editora Fugue o livro Le Secret du Piano, do jornalista Olivier Bellamy. Biógrafo da pianista Martha Argerich, grande amiga de Freire, ele agora se dedica a recuperar a trajetória do artista.

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O nome do livro faz alusão a uma alcunha que acompanhou Freire durante décadas, a de principal segredo do piano internacional. O músico passou um longo período sem gravar e, pouco afeito a entrevistas, nem sempre frequentou as páginas de jornais e revistas. No início dos anos 2000, porém, quando voltou a entrar em estúdio para uma série de discos para a Decca, o mundo da música redescobriu o artista, que logo deixou de ser um “segredo” e foi colocado entre os grandes intérpretes de nosso tempo.

Nelson Freire, em 2016, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro Foto: Marcos D'Paula/Estadão

Bellamy narra essa trajetória em seu livro, mas combina o registro histórico ao olhar pessoal de quem conviveu com o pianista. “Hipersensibilidade, personalidade indócil e uma espécie de maldição o mantiveram à parte, até a apoteose dos últimos anos. Mas seu toque nobre, poderoso, sensual e colorido acabou rendendo a ele o amor do público além da admiração dos músicos”, escreve o autor.

Veja vídeos de Nelson Freire tocando na adolescência



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