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Apoteose de 'O Pai da Rita' ecoa mundo afora

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Cena de "O Pai da Rita" Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Somando-se a ativa iniciativa do estande Cinema do Brasil na Croisette com a retumbância da exibição de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), em 4K, na Salle Bazin, na quarta-feira, a produção audiovisual brasileira vem angariando olhares atentos no Festival de Cannes, cheios de curiosidade por títulos que estão por ser rodados (como "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles) e por estreias recentes, badaladas no Festival do Rio, como o vencedor do Troféu Redentor da Première Brasil, "Medusa". Os 320 mil ingressos (se é que o número já não subiu) vendidos por "Medida Provisória", de Lázaro Ramos, em circuito, vem reverberando, e bem, nos papos de corredor do balneário, despertando a atenção da Europa para a potência comercial de títulos nacionais que abordam a luta antirracista. Nesse aspecto, a menção a estreia de "O Pai da Rita", de Joel Zito Araújo, em nossos cinemas, ecoa pelas conversas da Côte d'Azur, à força da recepção calorosa que o realizador mineiro recebeu no Velho Mundo, em 2019, quando lançou o .doc "Meu Amigo Fela", no Festival de Roterdã. Há um desafio a ser transposto pelo trio central que move a trama do primeiro longa de ficção de Joel Zito Araújo desde sua consagração pelo melodrama, no Festival de Gramado de 2004, com "Filhas do Vento". De um lado, Rita (Jéssica Barbosa) quer saber quem é seu pai biológico. Do outro, potenciais candidatos a esse posto, Pudim (Ailton Graça) e Roque (Wilson Rabelo), sambistas que lembram Walter Matthau e Jack Lemmon (respectivamente) em "Um Estranho Casal" (1968), têm que se adaptar à realidade paterna e a toda uma transformação moral do mundo onde fincaram raízes. Mas isso é apenas o esqueleto (bem) erguido pelo roteiro de Di Moretti (de "Cabra-Cega"), a partir de um argumento de Joel Zito. Há muito da estética de Ettore Scola (1931-2016) nessa comédia triste do realizador de "A Negação do Brasil" (2000). Não há como evitar uma comparação com "C'Eravamo Tanto Amati" ("Nós Que Nos Amávamos Tanto"), de 1974. Lá, a trajetória partidária de uma célula política era explorada, décadas adentro, a partir da conexão entre três amigos (dois deles amantes). Fora isso, é difícil não lembrar de Marcello Mastroianni (1924-1996) e Giancarlo Giannini em "Dramma Della Gelosia (Tutti I Particolari In Cronaca)" (o delicioso "Ciúme à Italiana", de 1970), também de Scola, vendo a maneira uma como Ailton Graça e Wilson Rabelo harmonizam suas especificidades dramáticas e cômicas numa simbiose plena. Há também uma conexão com uma certa tradição brasileira de crônica de costumes. E ela se dá com dois grandes diretores: o Hugo Carvana (1937-2014) de "Bar Esperança" (1983) e o Waldir Onofre (1934-2015) de "As Aventuras Amorosas de um Padeiro" (1975). Ambos olhavam a periferia como macrocosmos de afetos. Diretamente da Croisette, o P de Pop foi atrás de Joel Zito, para ouvi-lo.

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Mais do que contar uma história de paternidade, seu filme é uma preciosa crônica de costumes, que me fez lembrar do Waldir Onofre e do Hugo Carvana. Qual é o mundo, satélite do samba, que você buscou esquadrinhar em O Pai da Rita? Joel Zito Araújo: O PAI DA RITA é uma história sobre paternidade negra e sobre amor fraternal entre dois homens negros, mas que também celebra o samba paulistano e a presença negra em uma cidade que se pretende branca. E isso se passa especialmente em um dos bairros mais tradicionais da cidade de São Paulo, o Bixiga, que emergiu do antigo Quilombo da Saracura, e acabou virando sinônimo de bairro italiano. Eu, sem "querer querendo", tentei desmontar a galhofa de Vinicius de Moraes de que São Paulo é o túmulo do samba. A cidade tem Geraldo Filme, tem Adoniran Barbosa e escolas de samba cheias de história e de tradição, como a Vai-Vai, tão bem retratada em O PAI DA RITA. Você tem razão: creio que me insiro, com este filme, nesta tradição de crônica de costumes tipo aquelas que Carvana fez tão bem, falando sobre o Rio de Janeiro.De que maneira os dados sociais acerca de paternidade nas periferias do Brasil te ajudaram na construção do argumento? O Brasil é chamado de "mátria" pelo número de famílias sem pai. Essa estatística te serve de alguma forma? Joel Zito Araújo: O filme nasceu da preocupação de dialogar exatamente com isso. Mas, não sei por quais motivos, a temática da redenção, que já estava em "Filhas do Vento", agora se repete neste filme. Acho que preciso de ir a um psicanalista. Não é um filme dramático sobre o problema da ausência de homens negros na criação dos filhos. Tomei a chave da comedia para ajudar a promover a cura, a redenção. É um filme propositalmente alto astral tratando de coisas simples e sérias da vida."O Pai da Rita" gravita pela discussão entre tradição e modernidade, entre o novo e o arcaico. De que maneira, um país que tenta reaprender a lidar com suas intolerâncias consegue se equilibrar entre os extremos da renovação e da preservação de velhos hábitos? Joel Zito Araújo: Sei o quanto é raro ver um filme que celebra o amor entre pretos e pretas. E estou feliz ao ver, nas pré-estreias, o quanto o público recebe a celebração destes amores e a visibilização de tudo isto, com alegria, o quanto todos saem leves e encantados com o filme e com um Brasil do qual estamos com saudades. O filme sonha em ser aquele que antecipa o retorno das relações de afeto e de amizade em um Brasil que parece ter ficado distópico. E, para chegarmos a isso, temos de conciliar alguns extremos, simbolicamente celebrando a tradição da velha guarda das escolas de samba e dos terreiros, e valorizando a modernidade da juventude negra, bem representada pela geração frequentadora do quilombo urbano Aparelha Luzia, criado pela deputada trans Erica Malunguinho, que estreia como atriz de cinema neste filme.

p.s.: Saindo do Brasil, mas ainda falando do cinema latino-americano em Cannes, há espaço na Semana da Crítica, seção paralela à disputa pela Palma dourada, para valorizar a Colômbia, que traz uma panorâmica de Bogotá no longa "La Jauría", de Andrés Ramírez Pulido. Sua trama se concentra na rotina de adolescentes internos em centro de detenção de menores nas cercanias de uma floresta. Há colombianos também na Quinzena dos Realizadores: "Un Varón", de Fabian Hernández. Seu realizador põe foco nos conflitos internos de um rapaz, interno em um abrigo, que sonha passar o Natal com sua família, apesar de conhecer bem o contexto violento que cerca seus parentes.

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