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'Bocaina' leva Première ao 'Limite' da excelência

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Heloísa Passos assina a fotografia de "Bocaina" Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Tem pelo menos uns 14 anos que uma pensata do filósofo italiano Giorgio Agamben serve ao cinema como chave para abrir a pesada arca de signos de "Limite" (1931), de Mário Peixoto (1908-1992), e, a partir desta quarta-feira, as reflexões publicasas nu ensaio de 2008 pelo autor de "Estado de Exceção", passam a abrir, também, os códigos de "Bocaina". É esse o título do mais silencioso (e talvez mais arriscado) concorrente ao troféu Redentor de Melhor Ficção da Première Brasil 2022, a julgar pelas produções exibidos até aqui. Sob os planos contemplativos - alguns são de um chiaroscuro sublime! - de Heloísa Passos, esconde-se uma imersão metafísica no estado mais selvagem da Natureza. Algo que, no cinema recente, só se viu igual com o mexicano Carlos Reygadas em seu "Post Tenebras Lux", de 2012. E é a atriz Ana Flávia Cavalcanti, num duo de direção com Fellipe Gamarano Barbosa, quem nos leva a esse oceano semiótico de reinvenção do que se chama "roça" . E é lá, na roça, onde entra Agamben, como um Exu que leva e traz recados da sabedoria:"A contemporaneidade seria essa relação singular com o próprio Tempo, que se adere a ele, mas, ao mesmo instante, toma distância de si; mais especificamente, é essa relação com o Tempo que adere a ele por meio da diferença e do anacronismo. Aqueles que coincidem completamente com a época não são contemporâneos, pois, justamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo seu olhar sobre ela", defende Agamben nas páginas de "Che Cos'È Il Contemporaneo?", na fricção entre a consciência, a vivência, a espera. É dessa fricção que, no primeiro tempo da partida entre a covid-19 e a Humanidade, Ana Flávia e Barbosa extraíram uma iguaria audiovisual rascante e amadeirada. Na quietude mineira das Gerais, na região chamada Funil, da cidade de Bocaina de Minas, em meio à pandemia, duas atrizes de peso - a própria A.F. Cavalcanti, que atraiu os aplausos de Roterdã com "Rainha", e Malu Galli, reverenciada em Cannes no curta "Areia" - emprestaram suas máscaras trágicas a entes narrativos que parecem espelho uma da outra.

Metafísica do roteiro estrelado por Ana Flávia Cavalcanti e Malu Galli lembra a de "Limite" Foto: Estadão

Laureado na Semana da Crítica da Croisette com "Gabriel e a Montanha" (2017), Barbosa dirige com Ana, a quatro mãos, essa poesia ensaística sobre o que é perene, o que é perpétuo, o que murcha, o que seca - ou seja, cada uma das sensações de perigo inerente a essas quatro estações. "Bocaina" é uma estilizada contextualização espiritual do isolamento. O ator Alejandro Claveaux é o terceiro ente a chegar naquela região de mato verde, onde se criam galinhas, onde se comem frutas, onde nada (aparente) se passa. Pelo menos não até a chegada de uma figura mefistofélica (vivida por Claveaux) aparecer e trazer para as duas mulheres que o acolhem as manifestações de luzes que geram olhares atônitos. Tudo se repete no dispositivo armado por Ana Flávia e Barbosa, como se repetia em "Limite". Só que lá, em Mário Peixoto, havia um barco. E, nele, três almas errantes carregavam os grilhões da eternidade de uma navegação sem rumo. Em "Bocaina", tudo é numa casa, onde se ouve MPB do bom e uma melodia indie anglófila. Não ouvimos o trio falar. Parece até a mudez dionisíaca de "O Anjo Nasceu" (1969), de Julio Bressane, onde estar quieto é tangenciar o inaudito. E o inexplicável. Como faz "Bocaina". O filme revela duas instâncias temporais: uma no passado, mais bucólica; outra, no presente, atualíssima, desconectada da linguagem. Claveaux é um sujeito misterioso que, junto com as duas mulheres que o encontraram, permeia esses dois espaços. Ele as ajuda a se libertarem de suas amarras, ao mesmo tempo em que a narrativa cria um paralelo com a sensação de suspensão e incerteza que a pandemia nos fez sentir... e sofrer. São espíritos à deriva, unos num só desacerto, que a luz de Heloísa coroa com exuberância. Tem mais uma exibição de "Bocaina" no Festival do Rio, nesta quinta, 13h30, no Odeon.

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