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'Chega de Saudade!': partitura antirracista

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Apoiado num elenco luminoso, o espetáculo "Chega de Saudade!" tem sessão dupla hoje no Sesc Copacabana - Fotos de Lígia Jardim - Divulgação  

RODRIGO FONSECA Nas páginas do artigo "Raça, o Significante Flutuante", o sociólogo jamaicano Stuart Hall (1932-2014) faz um potente mapeamento da intolerância e do racialismo, no âmbito da religião, da ciência e da linguagem. Diz, logo no início, que "raça é um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam na sociedade humana". Melhor tradução teatral para a provocação antirracista de Hall do que "Chega de Saudade" é difícil de se encontrar hoje em cartaz no país. Deu tanta gente no Sesc Copacabana no sábado, pra ver o espetáculo do grupo Aquela Cia, com direção de Marco André Nunes e texto de Pedro Kosovski, que vai ter sessão dupla neste domingo, às 17h e às 20h30. A sacada deles, no olhar retroativo para um movimento responsável pela revolução musical do país - a Bossa Nova, entre os anos 1950 e 60 -, é um primor, pois utiliza um dispositivo metalinguístico - a feitura de um filme, nos dias de hoje - para passar em revista desequilíbrios de representação num processo chamado, em dado momento, de "embranquecimento do samba". Lembra "'Round Midnight" (aqui "Por Volta Da Meia-Noite"), o filmaço de Bertrand Tavernier com o jazzista Dexter Gordon, só que misturado ao "Mais e Melhores Blues", de Spike Lee. É som e é fúria. É Abdias do Nascimento com James Baldwin. De uma inteligência incandescente no aproveitamento da geometria do palco do Sesc da Rua Domingos Ferreira, espalhando-se por vezes por até seis vértices de ação, sempre sagazmente iluminados por Renato Machado, a direção de Marco André Nunes assume uma cabine de som no canto esquerdo da cena como eixo irradiador da dramaturgia. Rommel Equer opera a luz com destreza de espadachim por cada canto, até a tal cabine. É de lá que a cineasta vivida a golpes de martelo nietzschianos por Polly Marinho (entre a ironia dionisíaca e uma fúria de Mano Brown) conduz as filmagens de um experimento audiovisual sobre a Bossa Nova. "Imagina como eles vão reagir ao ver que só vai ter gente negra em cena!", provoca Polly, num dado ponto do texto de Kosovski (escrito com a colaboração de Rodrigo de Arruda) sobre o status quo da "Zona Sul Maravilha" do RJ, vendo uma troca simbólica na representação de ídolos da canção. Ídolos como João Gilberto, Roberto Menescal, Sylvia Telles, Nara Leão e Carlos Lyra. Nesse filme ficcional, só atrizes negras e atores negros estão em cena, não num processo mimético de encanação dos músicos acima listados, mas, sim, num esperto jogo de arquétipos e de reflexão sobre o whiteashing da História. Quando a diva da Lapa Blackyva, multiartista trans da Rocinha, entra em cena, soberana, cheia de gás, recriando os feitos de Nara Leão, o Sesc Copacabana engasga, treme, rende-se e vibra diante de uma força da natureza em estado de graça no palco. Blackyva bebe do cálice da excelência ao abrir sua caixa de ferramentas para buscar lágrimas, cantoria e indignação, ao emular diferentes estágios de Nara em cena. A eficácia de todo o elenco - misturando sorrisos tão incandescentes quanto as velas pra Exu com carrancas de raiva de despertar Xangô - é notável. Há uma harmonia plena em Felipe Oládélè (Boscôli), Hugo Germano (Menescal), Jessica Barbosa (devastadora como Silvia Telles), Muato (Lyra) e Izac da Hora, sublime como João Gilberto. Vale destacar a forma ágil com que a trupe interage com vídeos (num sistema de Júlio Parente, operado por Igor Gouvêa, com câmera febril de Diego Ávila), dando uma camada sensorial a mais na construção espacial. Em seu procedimento como diretor, mesclando cicatrizes e encantos, Marco André Nunes evoca ainda (conscientemente ou não) "Bird" (1988), de Clint Eastwood, sobre Charlie Parker.

Blackyva emula os feitos de Nara Leão num dos vídeos da peça - Foto: Lígia Jardim

Há uma sequência em que Polly categoriza a relevância do músico Johnny Alf (1929-2010) pra Bossa Nova e seu apagamento dos registros mais pop do movimento, destacando que nem mais seu famoso piano ele teve o direito de ter a seu lado no fim de uma carreira seminal para a MPB. "Era negro e gay", enfatiza Polly, elencando preconceitos. Igualmente trovejante é o temporal que essa extraordinária atriz goteja ao fazer uma análise semiológica do "Samba da Bênção", de Vinícius de Moraes, flagrando nódoas de sexismo ("Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher/Feita apenas para amar/Para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão") e de racismo. "Mas quem sou eu pra cancelar Vinícius de Moraes, ainda mais aqui em Copacabana!", brinca Polly. Gigantes também são as misturas que Blackyva faz, misturando um desabafo sociológico a hinários amorosos, com a pujança com que faz em seu cancioneiro particular. Blackyva ficou famosa por versos como: "Quem me perguntar o que estou fazendo aquie/estou resistindo pra não ter que te servir". No inventário de tantas feridas, "Chega de Saudade" nos devolve a Stuart Hall, em sua máxima sobre a segregação racial de que: "o fato em si é precisamente a cilada da superfície, que nos permite descansar no que é óbvio, no que está presente de forma manifesta, o que nos é oferecido como sintoma da aparência".

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