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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

‘Kardec’ e os espíritos do ‘streaming’

Rodrigo Fonseca Um dos maiores sucessos do Brasil nas telas, em 2019, “Kardec” agora forma novas fileiras de olhares (e credos) no altar da Netflix. É um dos títulos em destaque do streaming, neste momento em que um longa-metragem de tom similar, “Divaldo - O Mensageiro da Paz”, entra em cartaz, com força para lotar salas. Eviscerado por uma crise política e por uma queda vertiginosa em suas bilheterias, o cinema brasileiro agarrou-se nesse filme, há uns quatro meses, como se ele fosse um milagre redentor. Em sua arrancada 510 mil ingressos foram vendidos por este filme de genuflexão à fé em apenas duas semanas em cartaz. É uma das performances de acesso às exibidoras mais fortes do audiovisual latino-americano este ano, com espectadores voltando múltiplas vezes para rever a produção. Mas esse sucesso faz eco em um fenômeno histórico e em uma distorção da segurança pública no país. De uma dignidade irretocável em sua tessitura plástico e em suas estratégias dramatúrgicas, Kardec, a munição mais poderosa do cinema nacional na guerra com Os Vingadores por mais espaço em tela, remete o olhar a uma viagem no tempo que se bifurca entre o trágico e o risco bem-sucedido. É uma estrada cindida que tem como marco zero a mesma data, 2008. No frigir daquele ano, um “barracão de santo” (uma casa de candomblé) no Catete, na Zona Sul do RJ, foi invadida por uma horda de fundamentalistas enfurecidos contra qualquer doutrina que se reportasse ao Além. Era uma turba de uns quatro ou cinco, que quebraram alguidares, deram duras nos zeladores da casa e macularam as estátuas de adoração e reza ali presentes. A PM chegou a tempo de impedir uma violência contra as responsáveis pelo terreiro, mas o trauma do incidente caiu na mídia e decretou iniciada a jihad carioca, que hoje se faz notar com uma série de brutalidades contra adeptos do sincretismo religioso de origem africana. Naquele mesmo período, os cinemas brasileiros, tomados por super-heróis Marvel e DC, viveram um milagre quando “Bezerra de Menezes: O diário de um espírito” estreou, vendendo cerca de 500 mil ingressos e se estabelecendo como um inusitado fenômeno de religiosidade em um território dedicado ao entretenimento. Começava ali, nas cicatrizes de uma tragédia ligada à intolerância, uma vertente 100% Brasil de um filão vetusto, que deu seus primeiros sinais de vida ainda na década de 1910: o cinema parábola. Esse é o termo usado para narrativas cuja finalidade consciente é buscar a evangelização, seja de credo for, ou, no mínimo, de se abrir um debate sobre uma prática de fé específica. Um dos maiores sucessos de bilheteria em cartaz hoje no Brasil, o tocante “Superação - O milagre da fé”, com 1,5 milhão de pagantes vendidos, em tempos de Capitão América, é um dos exemplos desse derivado retórico do gênero épico. É um caso ligado a uma linha evangélica protestante. Há casos católicos, como “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, que não buscava verter a Bíblia em argamassa de drama só por razões estéticas, mas por uma estratégia política de difusão de um conceito cristão.

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Por Rodrigo Fonseca
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