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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Primavera Bressane nas telas

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Julio Bressane em sua vitória no Fest Aruanda, na Paraíba, quando concorreu a prêmios com o deslumbrante "Capitu e o Capítulo" e recebeu o troféu de Melhor Filme e o de Melhor Direção, em 2021 - Foto de Mano de Carvalho  

RODRIGO FONSECA É tempo de Julio Bressane nas telas - e que bom tempo é esse! - com revisões e atualizações. Aplaudido em sua passagem por Roterdã, "Longa Viagem do Ônibus Amarelo" (na foto), uma produção de 432 minutos em que o mítico diretor passa em revista cerca de seis décadas de carreira, será exibido neste sábado, às 13h, na Cinemateca do MAM. A projeção do mais recente longa de Bressane, codirigido com Rodrigo Lima, integra a programação do Festival ECRÃ, evento de arte e cinema experimental que começa no Museu de Arte Moderna nesta quinta, com a exibição de "Aburidashi", de Nonoho Suzuki e de "A Rosa Azul do Esquecimento, de Lewis Klahr, a partir das 15h. Mas tem mais boas novas sobre o realizador carioca: no dia 27 de julho, a Pandora serve às plateias mais ávidas por invenção de nosso circuito uma iguaria que deu a Bressane os troféus de Melhor Direção e de Melhor Filme no Fest Aruanda 2021: "Capitu e o Capítulo". Periga ser o trabalho mais pop dele, se é que possível usar esse conceito para um realizador de um universo tão particular.

"Longa Viagem do Ônibus Amarelo" deu carona a Roterdã e faz ponto no MAM neste sábado - Crédito: Foto do acervo TB Produções  

Frente ao meticuloso puzzle de sentidos montado por Mariana Ximenes, numa atuação com a inteligência à flor da pele, ao encarnar os olhos de ressaca da personagem mais indecifrável de nossa literatura, "Capitu e o Capítulo" não deixa a seu elenco outra alternativa que não nos desafiar por uma esgrima que vai além das palavras de Machado de Assis (1839-1908). O que o público de João Pessoa viu, na disputa de prêmios de sua maratona cinéfila, foi um desfolhar de "Dom Casmurro" (1899) pela lupa semiótica de Júlio Eduardo Bressane de Azevedo. Sua produção de filmes, em 57 anos na direção, é ampla, com pelo menos duas obras-primas: "Tabu" (1982) e "O Mandarim" (1995). Mas seu trânsito pelos campos de centeio machadianos - onde se deitou para rodar "Brás Cubas", de 1985, e "A Erva do Rato", de 2008 - rende seu filme mais requintado (na direção de arte, na fotografia e na lida com Ximenes) em uma década. E é, talvez seu mais ousado rito de desmistificar formas de representação - coisa que fez, com Hollywood, e não com a literatura, em "Cleópatra", de 2007. Mas o sintoma de humanidade (e, quiçá, de cinefilia) mais aflorado em sua analítica estrutura narrativa é a atuação quase clownesca - digna de gigantes das chanchadas da Atlântida como Zé Trindade e Colé - feita por Cláudio Mendes, no papel de José Dias. Qual se falou antes, em meio a um ritual de empoderamento de Capitu, no qual Mariana X esculpe a "cigana oblíqua" qual uma pombajira, os demais intérpretes parecem desafiados a encontrar frestas no verbo e mesmo no gestual. O Bentinho de Vladimir Brichta, por exemplo, parece não ter centro em sua gravidade, andando de modo trôpego, quase diagonal, expondo o peso da angústia que devora sua alma, na dúvida de ter sido traído ou não. Djin Sganzerla, como Sancha, desliza qual fosse espuma, num falar baixo, ronronado. Saulo Rodrigues, compondo um Escobar venenoso - quase tão perigoso como o de Raul Cortez em "Capitu", filmado por Paulo Cezar Saraceni em 1968 - é um colosso impávido. Para dar vida a Casmurro, o Bentinho de madureza, Enrique Diaz se assemelha a um pierrô, recitando para a Colombina do Destino os poetas lidos por Machado. Mas Cláudio faz algo mais... carnavalesco.

Enrique Diaz encarna o espectro de Dom Casmurro em "Capitu e o Capítulo", que estreia em julho - Foto: @TB Produções

Colaboradora recorrente de Bressane, vista em "Filme de Amor" (2003), "Cleópatra" e em "Educação Sentimenal" (2013), Josie Antello é a parceira que oferece ao José Dias de Cláudio o diapasão preciso para sua loucura criativa reverberar. Ela dança com ele. É uma dança que sintetiza novos caminhos para se aproximar do pensamento do Bruxo do Cosme Velho. Ator de fartíssimos recursos cênicos, como se viu nos palcos na montagem de "O que diz Molero", em 2003, Mendes despertou a atenção do cinema no curta-metragem "Truques, Xaropes e Outros Artigos de Confiança", de Eduardo Goldenstein, também há 18 anos. Em geral, em cena, o sorriso dele tem a temperatura acolhedora do heroísmo do rendimento (linha de personagens oprimida por vetores econômicos), traduzido em nossa telona por Zé Trindade. No longa de Bressane, vemos a vaidade e até a futilidade de uma classe que não é a de seu José Dias. Com a sagacidade dos que já tiveram fome e apelaram para a inteligência - nunca para o pedigree - a fim de saciá-la, o José Dias de Mendes tem a medida do que há de medíocre na burguesia e tem a sagacidade de se aproveitar da miopia do que os cercam. Mas o faz sem perder a dignidade, carnavalizando opções num filme que parece uma P.A. (progressão aritmética) de sensações. Que Bressane delicioso! Quem sabe a "Longa Viagem do Ônibus Amarelo" não gere sinestesia semelhante. É comum se ouvir falar do cinema de Bressane como sendo o que de mais hermético que o audiovisual brasileiro já produziu. Talvez essa deselegância se perpetue porque a transcendência por ele alcançada (e generosamente compartilhada conosco, filme a filme) exija um grau de liberdade que demanda disposição para incomodo e para reticências e demanda a humildade de não esperar uma resposta de tudo. Esse novo Bressane é tudo isso. Seu efeito nas retinas é o de um colírio, sobretudo na fotografia de Lucas Barbi, valorizada na montagem autocrítica de Rodrigo Lima, capaz de um surpreendente uso de cenas de bastidor de filmagens nos minutos finais.

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