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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Bibliotrumpografia

Após eleição, cresceu a venda de livros como ‘O Complô Contra a América’, de Philip Roth

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Atualização:

Não dá para acreditar, mas Donald Trump também é cultura. Nenhuma outra figura pública tem incentivado mais a leitura e compra de livros em Trumpolândia do que ele. E não são xaropadas de autoajuda, intrigas de espionagem e futricas sobre celebridades, mas obras de comprovada qualidade e urgente serventia, cujas vendas se multiplicaram depois e por causa de sua eleição.  Entre os mais vendidos na Amazon e também em livrarias físicas, nas últimas semanas, figuram três clássicas distopias - 1984 (de George Orwell), O Complô Contra a América (de Philip Roth) e It Can’t Happen Here (de Sinclair Lewis) - sobre as quais escrevi aqui recentemente, acompanhadas de outra (O Conto da Aia, de Margaret Atwood) e de um histórico ensaio que por vias indiretas as contextualiza: Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt.

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O pesadelo futurista de Orwell e as análises de Arendt, ambos já com quase 70 anos de circulação e ininterrupta renovação de leitores, são best-sellers recorrentes em períodos de perplexidade e surto autoritário como o que a América atravessa desde a ascensão de Trump à Casa Branca. 

Os tais “fatos alternativos”, novo eufemismo para mentiras, desinformação e falsas notícias timbrado por Kellyanne Conway, a ofídica assessora política de Trump, e a cínica atuação do porta-voz da presidência, Sean Spicer, desde o dia da posse, nos evocam o Ministério da Verdade de Oceânia, o estado totalitário imaginado por Orwell, dominado por um partido único que se orienta por três paradoxais bordões: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. O próprio Trump é um portento de prepotência e xenofobia, um bufônico Big Brother. Cinco dias depois de sua investidura, a Penguin precisou reimprimir mais 75.000 exemplares de 1984 para atender à demanda do mercado. Essa ação afirmativa do (e)leitorado americano veio acompanhada de outra: a adesão de livreiros de todo o país ao crescente movimento de resistência ao trumpismo. Reportagem do New York Times, publicada na última quarta-feira, mostrou a quantas já chegou a militância nas livrarias, que, aliás, desde quinta-feira comemoram o aumento de 2,5% na venda de livros no país em 2016. “Transformamos nossas lojas em barricadas revolucionárias”, disse, esbanjando orgulho, uma livreira com negócios em Nova York e Nova Jersey. A revolução, por ora, consiste em dar destaque nas mesas e vitrines a livros como os de Orwell, Arendt, Lewis, Atwood e a quem mais aborde, de maneira direta e negativa, o atual populismo em alta, e organizar encontros, palestras e passeatas, à parte imprimir panfletos com a mesma incandescência dos que há quatro décadas malhavam Nixon e exigiam o fim da guerra no Vietnã.

O Conto da Aia, a distopia feminista da canadense Atwood, tem muito a ver com a misoginia e as grosserias sexistas do novo presidente americano e a opressão patriarcal prenunciada desde o lançamento de sua candidatura, afora a questão do aborto, combatida com um ardor inquisitorial. Na República de Gilead em que os Estados Unidos se transformam não existem mais jornais e revistas, nem livros nem filmes, destruídos que foram pela nova ordem, junto com as universidades. Gilead, homenagem àquela região montanhosa a leste do rio Jordão, citada no Gênesis, implantou-se onde outrora ficava a Nova Inglaterra, escolha cheia de simbolismo já que fora naquela parte do continente que os peregrinos vindos da velha Inglaterra fizeram brotar a América. É um estado teocrático e totalitário, uma Oceânia governada pelo puritanismo, o fanatismo, a misoginia e a megalomania militarizada. Não tem advogados, mas tem tortura e pena de morte. Quem lá mais sofre são as mulheres, destituídas de direitos e divididas em categorias, cada uma com uma função específica na sociedade: esposas (casadas com os mandachuvas do governo), econoesposas (casadas com homens de escalão inferior), martas (muito idosas para procriar, rebaixadas a escravas domésticas), tias (propagandistas do regime); e aias (férteis e forçadas a ter filhos com oficiais cujas esposas se tornaram infecundas).

Quem registrou a história dessa ditadura - em depoimento gravado para a posteridade - foi uma aia de 33 anos chamada Offred, reduzida a uma máquina procriadora e que sofre o diabo enquanto nos dá uma lição sobre a fragilidade humana, o fascismo religioso, o livre-arbítrio, os direitos civis, o poder, e até sobre como fugir para o Canadá, o exílio prioritário dos gileadenses, assim como dos americanos desde a guerra no Vietnã. Quando o romance foi publicado, em 1985, disseram que Atwood havia exagerado. Infelizmente, não exagerou. Nem o Canadá deixou de ser uma rota de fuga.

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Incentivados pela procura por livros que ficcionalizam e analisam regimes autoritários, blogueiros literários passaram a municiar os internautas de outras sugestões de leitura que consideram pertinentes, porque de algum modo alusivas ao momento presente, além de didáticas e catárticas. Exemplos: Os Lança-Chamas, de Rachel Kushner; O Fundamentalista Relutante, de Mohsin Hamid; A Festa do Bode, de Vargas Llosa, para citar apenas os traduzidos no Brasil. Numa dessas listas topei, surpreso, com Afirma Pereira, do italiano Antonio Tabucchi. Agradável surpresa, pois é um dos melhores romances sobre as trevas salazaristas, numa Lisboa que, como a Europa, fedia a morte. Editado em 1994 e traduzido pela Cosac Naify quatro anos atrás, dá um retrato da opressão fascista e carola em Portugal, através do testemunho de um jornalista metódico e acomodado que edita a seção cultural de um jornaleco lisboeta e, a despeito de seu apolitismo, termina arrastado ao maëlstrom repressivo ao envolver-se, ingenuamente, com um jovem antissalazarista com veleidades literárias. Pereira é seu nome; daí o título declarativo: “Afirma Pereira” (em italiano, “Sostiene Pereira”). Tabucchi o imagina e recria a partir do tórrido verão de 1938, com uma guerra civil do outro lado da fronteira e um conflito armado mundial prestes a eclodir. Pereira é um católico obcecado pela questão da morte, que não acredita na ressurreição da carne e faz confidências diárias ao retrato de sua falecida mulher. Conheci alguns Pereiras durante a ditadura militar daqui e tomei conhecimento de inúmeros sucedâneos estrangeiros, igualmente patéticos e heroicos. Gostaria de me deter mais sobre esse romance muito especial em outra ocasião, sem a obrigação de estabelecer ou insinuar paralelos com a prepotência trumpista.