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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Dois argentinos

Só na semana passada tomei conhecimento de Ricardo Darré e Graciela Anton

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Atualização:

Podem me gozar, mas, com humildade, confesso: só na semana passada tomei conhecimento de dois importantes argentinos, Ricardo Darré e Graciela Antón. Se acrescentar que descobri o primeiro no blog da New York Review of Books, muitos de vocês poderão pensar que se trata de um escritor ainda desconhecido entre nós; assim como Graciela, a quem cheguei através de uma reportagem da BBC News. Darré escreveu pelo menos dois livros; Antón, nenhum. Não sei por que os argentinos são tão chegados a um Ricardo. Ricardo Darín, Ricardo Piglia, Ricardo Gareca - agora esse, que, aliás, nem é de agora. (Ricardo era o nome que eu, em criança, queria ter. Não por causa de Ricardo Coração de Leão, mas de Ricardo, O Rei da Polícia Montada, herói de quadrinhos cujas aventuras nas Montanhas Rochosas acompanhava nas páginas de O Guri. Fim da digressão.) Nascido em Buenos Aires, no final do século 19, Ricardo, filho de imigrantes alemães, na verdade se chamava Richard: Richard Walther Darré. Tinha 9 anos quando, em 1904, levaram-no para a terra de seus antepassados, para educar-se, especializar-se em agricultura, e na volta dar-se bem no “celeiro do mundo” em que se transformara a Argentina. Ele, porém, ficou por lá mesmo e, empolgado com os discursos de Hitler, aderiu ao nazismo. Aderir não expressa com exatidão o que de fato aconteceu. Darré publicou em 1930 um ensaio racista, sugerindo que os seres humanos podiam ser purificados pelos mesmos métodos de “aprimoramento da raça” utilizados na pecuária bovina, que o futuro führer adorou. Idem Heinrich Himmler, comandante da SS, organização paramilitar ligada ao nazismo, que nomeou Darré ministro da Agricultura do 3.º Reich, em 1932, cargo que o teuto-argentino ocuparia por dez anos. Cúmplice de Himmler na orquestração do movimento “Blut und Boden” (Sangue e solo), Darré inspirou o programa Lebensborn (Fonte da vida), que apesar do nome bergmaniano cuidava da eugenia ariana nos moldes retratados por Margaret Atwood no romance O Conto da Aia, selecionando moças solteiras e de “sangue bom” para procriar cidadãos de imaculada linhagem. Seu afastamento do ministério deveu-se, exclusivamente, a “distúrbios mentais” decorrentes do estresse provocado pela azáfama ministerial. Quatro anos depois, o Tribunal de Nuremberg condenou-o pela expropriação de terras e escravização de milhares de fazendeiros poloneses e judeus. Quarta-feira próxima faz 65 anos que ele morreu, de câncer, em Munique. Não chorem por nós, argentinos. Nenhum filho brasileiro de imigrantes alemães - e o Partido Nazista do Brasil, fundado em Santa Catarina e com 3.000 integrantes, foi a maior congregação de simpatizantes de Hitler fora da Alemanha - fez carreira no 3.º Reich. Nunca tivemos um Heinrich aqui nascido como Henrique e afamado na Heimat paterna sob o jugo nazista. Por falar em nazistas, estreou anteontem nos Estados Unidos o filme Operation Terminale, drama histórico sobre a captura de Otto Adolf Eichmann, o arquiteto do Holocausto, por espiões da Mossad, a CIA israelense. Por falar em Argentina, sequestraram o carrasco nazista em Buenos Aires, em maio de 1960, e o levaram para Jerusalém, não exatamente para ser perfilado pela Hannah Arendt na revista The New Yorker. Ben Kingsley, que já foi Gandhi, Shostakovich, Lenin e até o caçador de nazistas Simon Wiesenthal, encarna o genocida alemão. Por falar em Ricardo, Eichmann viveu na Argentina como capataz da Mercedes-Benz em Buenos Aires, sob o nome falso de Ricardo Klement. Argentina foi o maior refúgio de foragidos nazistas das Américas e talvez do universo. “Essa presença contaminou o senso moral de uma nação afluente e bem-educada, com desastrosas consequências para seu povo”, ressalta o jornalista Uki Goñi, o blogueiro da NYRB que me apresentou a Ricardo Walther Darré. Em retribuição, os germanos ensinaram aos hermanos de farda as mais eficazes técnicas de intimidação, sumiço e assassinatos em massa, afinal postas em prática durante a ditadura instalada em 1976. É aqui que entra em cena a tal Graciela Antón que me foi introduzida pela BBC News. Mais conhecida como “La Cuca”, apelido que faz inteira justiça à medonha criatura que ela é, por dentro e por fora, Mirta Graciela Antón é a única mulher condenada à prisão perpétua na América Latina por crimes contra a humanidade. Ela tem 64 anos e está presa em Córdoba desde 2010, por conta de um alentado prontuário, que inclui 12 homicídios, 16 prisões ilegais, 21 casos de tortura, cinco desaparecimentos e seis abusos de autoridade, cometidos durante a ditadura militar argentina. De uma família de policiais, filha de um meganha violento com os filhos, “La Cuca” entrou para a repressão com 21 anos. Caiu nas malhas da força-tarefa que investigou os crimes ocorridos dentro do Departamento de Informação da Polícia (o temido D2), um dos maiores centros de detenção e tortura nas décadas de 70 e 80. Com a cumplicidade, como é sabido, de civis, da Igreja, da Justiça e de empresários. Amoral, sem nenhum tipo de sentimento, um autômato da crueldade, uma Ustra de saias, “La Cuca” adorava apertar e torcer seios das prisioneiras e bater nos testículos dos prisioneiros com um taco cheio de agulhas. Tinha o hábito de dar risadas e dançar enquanto torturava os presos políticos. Azar dela ter nascido na Argentina, onde os crimes como os que ela cometeu não passaram impunes. 

Opinião por Sérgio Augusto
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