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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Flanando com Valeria

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Atualização:

Ela já publicou três livros e vem para a Flip com o marido, Álvaro Enrigue, de cujo romance histórico-ensaístico Morte Súbita recentemente dei conta nesta coluna. Ambos são mexicanos estabelecidos em Nova York, surgiram para a glória literária na revista Letras Libres e pertencem a uma estirpe de escritores que despreza a narcoliteratura (o realismo mágico das últimas duas décadas, na terra de Carlos Fuentes) e não distingue as fronteiras entre ficção e ensaio. De Valeria Luiselli, 32 anos, já se conhecia aqui o romance de estreia, Rostos na Multidão (Los Ingrávidos), traduzido há dois anos pela mesma Alfaguara que agora nos traz o segundo, A História dos Meus Dentes, sem previsão para um eventual lançamento de Papeles Falsos, seu real début literário, editado em 2010 e conhecido nos países de língua inglesa pelo título de Sidewalks (calçadas). Foi justamente através dessa coletânea de microensaios em formato de verbetes que me sintonizei com a prosa sui generis de Luiselli e suas obsessões, literárias (Walter Benjamin, Baudelaire, Robert Walser) e avulsas (flanar por espaços urbanos e refletir sobre sua arquitetura, visitar cemitérios, ressuscitar fantasmas). Seu tom é o de um flâneur (ou uma flaneuse) filosofante, ora a pé (à procura do túmulo do poeta e ensaísta russo Joseph Brodsky no cemitério de San Michele, nos arredores de Veneza), ora no selim de uma bicicleta (a percorrer cada calçada da Cidade do México e perscrutar-lhe os relingos deixados pelo grande terremoto de 1985), ora no metrô de Nova York (a seguir as pegadas de um obscuro poeta patrício, Gilberto Owen, que viveu em Manhattan de 1928 a 1930, e o fantasma de Ezra Pound).  Italo Calvino, Roberto Bolaño, Enrique Vila-Matas, essa é a turma de Luiselli, uma escritora para escritores. Todos eles aparecem (com ou sem aspas) em seus dois romances, misturados a outras ilustres figuras, mortas e vivas, sem exclusão da própria autora, ainda adolescente, e Álvaro Enrigue, que também num dos últimos capítulo de A História dos Meus Dentes assume a identidade de um motorista de ônibus.  Vila-Matas, diga-se, foi um dos primeiros cativados “pela beleza do parágrafo, a elegância da prosa e o gosto pela palavra” da autora. Também me cativou o seu agudo senso de humor. O holandês Cees Nooteboom desmanchou-se em elogios do mesmo teor no prefácio à edição americana de Papeles Falsos, a única que pude ler com a urgência desejada. Nenhuma contraindicação. A bilíngue Luiselli supervisiona todas as traduções de seus textos para o inglês, quando não os escreve diretamente no idioma adotivo. Numa reflexão sobre a palavra saudade, expressou desejo de estudar português. Se o concretizou, ficaremos sabendo em Paraty daqui a alguns dias. Em A História dos Meus Dentes ela compôs parceria com a tradutora Christina MacSweeney, que lhe preparou toda a cronologia contextualizadora anexada ao romance. E que tanto pode ser lida antes, durante ou depois de conhecida a saga odontocêntrica, cujos primeiros parágrafos são irresistíveis: “Sou o melhor leiloeiro do mundo. Mas ninguém sabe disso porque sou um homem comedido. Meu nome é Gustavo Sánchez Sánchez, e todos me chamam, creio que carinhosamente, de Estrada (em espanhol, Carretera). Posso imitar Janis Joplin depois de duas cubas-libres. Sei interpretar biscoitos chineses da sorte. Posso colocar um ovo de galinha em pé numa mesa, como fazia Cristóvão Colombo na famosa anedota. Sei contar até oito em japonês: ichi, ni, san, shi, go, roku, shichi, hachi. Sei nadar de costas. Esta é a história dos meus dentes. É meu ensaio sobre os colecionadores e o valor inconstante dos objetos. Primeiro vêm o princípio, o meio e o fim, como em qualquer história. O resto, como um amigo meu sempre diz, é literatura: hiperbólicas, parabólicas, circulares, alegóricas e elípticas. E depois não sei mais o que vem. Possivelmente a ignomínia, a morte e, mais tarde, a fama post mortem. Mas sobre isso não terei que dizer mais nada em primeira pessoa. A essa altura serei um homem morto, um homem feliz e invejável”. Puro Shandy. Puro Machado.  Por que os dentes? Porque eles, não os olhos, “são as verdadeiras janelas da alma; são a tabula rasa em que se imprimem todos os nossos vícios e todas as nossas virtudes”, filosofa o narrador, como um Brás Cubas precocemente banguela.  Colecionador obsessivo e onívoro, que até as unhas do pai e o cabelo da mãe juntou a cacarecos recolhidos na rua e onde mais pisasse, Gustavo só descobre sua vocação para leiloeiro aos 42 anos. Depois de leiloar antiguidades na Europa, móveis na Califórnia, memorabilia em São Paulo, e aperfeiçoar seus pregões com o pitoresco Leroy Van Dyke, misto de cantor country e leiloeiro, ainda vivo no Missouri (deleite-se no YouTube com seu maior hit musical, The Auctioneer), especializa-se no fetiche dentário.  Fica rico seduzindo compradores para dentes de Platão, de Agostinho de Hipona (o futuro santo), de Petrarca, Montaigne (que esfregava os seus com o guardanapo após cada refeição), Rousseau (de quem restou apenas “uma peça dental”), Borges e outras afamadas bocas, nenhuma tão invejada quanto a de Marilyn Monroe, cujo sorriso, ligeiramente amarelecido pelo fumo, Gustavo reservou para si. O único dente de uma celebridade viva é um molar que Vila-Matas nem sentiu cair no prato de camarão à la diabla, saboreado por ele e o romancista mexicano Sergio Pitol, num restaurante de Vera Cruz. Recolheu-o um garçom discreto e previdente. Romance picaresco, com alusões a um vasto elenco de figurões (uma banca de jornal com o nome de Rubén Dario, um velhote tarado chamado Unamuno, o dono de uma loja de ferragens xará de Alfonso Reyes, um anão batizado Pushkin, afora a parentela do protagonista, todos Sánchez e com sobrenomes sobressalentes como Proust, Sartre, Walser, Foucault, Baudrillard), A História dos Meus Dentes nasceu de um projeto insólito, patrocinado por uma fábrica de sucos (Jumex) de Ecatepec de Morelos, nos arrabaldes da capital mexicana.  A Luiselli encomendaram uma obra ficcional inspirada na galeria de arte erguida junto à fábrica, a que a autora deu novo rumo interagindo com os operários, que lhe forneciam narrativas pessoais, incorporadas às aventuras de Gustavo Sánchez Sánchez. Estruturadas sob a forma de fascículos semanais, lidos e discutidos por e-mail pelas partes envolvidas, resultaram neste livro original que, entre outras virtudes (uma das quais nos entreter com saborosas minudências biográficas), me fez lembrar do nosso Campos de Carvalho.