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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Poetas tendem a preferir os gatos aos cães – daí a crença de que cão é prosa e gato, poesia

Depois de alguns anos, quebrei, contrariado, uma promessa, e voltei a ter um gato em casa: chegou já adulto, hóspede temporário, e foi ficando

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Depois de alguns anos, quebrei, contrariado, uma promessa, e voltei a ter um gato em casa. Chegou já adulto, hóspede temporário, e foi ficando. É meu primeiro bichano de raça: um siamês, acolhido com os mesmos mimos reservados aos vira-latas que o destino pôs sob minha guarda ao longo da vida.

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Devo a meus pais um amor incondicional pelos animais. A elurofilia, sinônimo besta de felinofilia que aprendi com o elurófilo Rubem Fonseca, peguei de minha mãe, que por mais de uma década cuidou de parte dos felinos do Aterro do Flamengo, com o mesmo afinco com que Paul Léautaud cuidava dos seus em Fontenay-aux-Roses.

Zé Rubem viveu 18 anos com a siamesa Betsy, a quem homenageou através da gata do detetive Mandrake, em A Grande Arte, e a quem dedicou a primeira, mais linda e curta narrativa da coletânea Histórias de Amor.

Otto Lara Resende também teve um siamês, que viveu pouco tempo como Zeno, pois logo a petizada da casa, ainda sem idade para conhecer o homônimo personagem de Italo Svevo, passou a chamar de Zano. Um belo dia, Zano sumiu. Otto dedicou ao susto e à busca duas crônicas, em abril de 1992, e numa delas até aludiu à minha elurofilia.

Chico, gato de Bento Pinheiro na cidade de Joanópolis, em foto de 19 de outubro de 2023. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Por desconhecer como se chamavam os siameses de Marilyn Monroe, Jean Cocteau, James Dean, Andy Warhol e Radamés Gnatalli, rebatizei o meu de Pinduca, alcunha cuja eufonia me encanta tanto quanto a figura de seu xará dos quadrinhos, o sonso garoto carequinha criado há 90 anos por Carl Thomas Anderson, com o insípido nome de Henry.

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Poderia ter recolhido alguma sugestão na esdrúxula onomástica felina de T.S. Eliot, mas não me imagino chamando um gato meu de “Jellylorum”, “Pettipaws”, “Rumple”, “Quaxo”, esquisitices ainda mais insossas que o apelido (“Xadrez”) com que chegou aqui em casa.

Poetas tendem a preferir os gatos aos cães – daí a crença de que cão é prosa e gato, poesia – e a melhor explicação para essa preferência nos deu Jean Cocteau: “Não existem gatos policiais”.

Que a lista de bardos elurófilos (Shakespeare, Petrarca, Poe, Neruda, Ferreira Gullar, entre tantos outros) talvez supere até a de ficcionistas é desconfiança que ninguém tem como provar nem desmentir. Mas nunca soube de um gato de poeta que tivesse o hábito de apagar a vela com a patinha, quando era hora de parar de escrever, como o de Charles Dickens.

O poeta modernista francês Paul Morand gostava tanto do seu siamês que se resignava a escrever em volta do espaço que ele deixava no papel sobre o qual costumava, felinamente, acomodar-se. Não sei se o gato de Maomé era siamês, mas li em mais de um lugar que ele sempre o trazia em seus braços, e de uma feita, convocado com urgência para um combate, entre desalojar o bichano e isolar a golpe de espada a parte do magnífico manto em que ele dormitava, fez o que era necessário e, sem um pedaço do manto, foi à luta.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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