O sucesso da série Cangaço Novo, do Amazon Prime Video, despertou discussões na Internet e nas redes sociais a respeito da existência real do banditismo representado pela ficção. Quem acompanha as notícias sabe que existem, de fato, grupos de assaltantes invadindo bancos, driblando a polícia e dominando cidades inteiras.
Mas o quanto aquelas cenas podem ser vistas na vida real. Eles prendem vítimas ao capô do carro na forma de escudos humanos? Estes homens combatem os políticos corruptos e distribuem parte do dinheiro aos habitantes? Por que são chamados de “novos cangaceiros”, se o modo de ação se difere tanto das práticas de Lampião, Corisco e outras figuras do sertão de décadas atrás?
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Em primeiro lugar, o nome...
“A partir de meados dos anos 2010, o termo ‘novo cangaço’ se tornou muito utilizado por delegados de polícia e jornalistas”, explica Jânia Perla Diógenes de Aquino. Ela é professora do programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC, e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência-LEV-UFC.
O termo foi utilizado em matérias dedicadas a um tipo específico de assalto a bancos, em cidades pequenas e médias, que ocorrem nas madrugadas, com quadrilhas formadas por dezenas de homens portando armas de grosso calibre. Isso demonstra uma postura audaciosa de ataque às instituições de segurança pública
Perla Diógenes de Aquino
A pesquisadora separa estes criminosos dos assaltantes a bancos “tradicionais”: “Destaca-se a questão do planejamento, o investimento em logística e a audácia de atacar forças de segurança pública. A sociedade está acostumada a ver a polícia perseguindo bandidos, mas aqui, existem casos de bandidos perseguindo viaturas. Eles conseguem provocar incêndios na porta das delegacias para obstruir a saída de viaturas e de policiais. Uma cidade inteira se torna vulnerável, o que não ocorre em outras modalidades de crime”.
Mas não é exatamente cangaço...
Para Durval Muniz de Albuquerque Jr., professor do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, é preciso distanciar as duas práticas chamadas de cangaço. “Elas não são comparáveis. Quando se trata da história do Nordeste, há uma tendência a repetir conceitos do passado para nomear eventos do presente”, critica.
“No Nordeste, toda manifestação política que remeta a relações familiares e nepotismo é considerada coronelismo. Ora, as mesmas famílias dominam a política catarinense e paranaense há muito tempo, mas ninguém chama de coronelismo nesses casos. A mesma coisa acontece com o cangaço. A noção de ‘cangaço novo’ aproveita o imaginário romantizado, inclusive pelas esquerdas. Transformou-se o cangaceiro em uma pessoa que combate a justiça social e o latifúndio, mas nada disso ocorre. Antônio Silvino, Jesuíno Brilhante, Corisco e Lampião eram filhos de proprietários de terra, não eram pobres. A utopia do cangaceiro era se transformar em coronel”, diz Durval.
Existe um Ubaldo ‘Robin Hood’ assim? É difícil...
Jânia concorda que o ideal de Robin Hood, com bandidos enfrentando os mais ricos para proteger os pobres, a exemplo das ações de Ubaldo Vaqueiro (Allan Souza Lima) na trama de ação, não encontra equivalentes na realidade. “Essa justificativa social de honra levou até o historiador Eric Hobsbawm a chamar o cangaço de banditismo social. Mas quando olhamos o contexto atual, vejo mais a afirmação da masculinidade num negócio lucrativo. As pessoas da cidade são tomadas como reféns, e ficam apavoradas”, diz.
“A série se refere à tradição audiovisual brasileira em torno desta temática”, aponta Durval. “Na década de 1960, só o diretor Carlos Coimbra fez mais de doze filmes a respeito do fenômeno, no que veio a ser chamado de nordestern. O cangaço também foi a base de muitos filmes do Cinema Novo, inclusive de Glauber Rocha, que produziu uma determinada maneira de ver o Brasil e o Terceiro Mundo”.
Ubaldo e Valdetário
É claro que a ficção criada por Mariana Bardan e Eduardo Melo não tem obrigação em seguir fatos históricos precisos, podendo apelar a um imaginário coletivo e efetuar concessões dramatúrgicas. Mesmo assim, a professora de sociologia separa elementos verídicos na história de Ubaldo e Dinorah (Alice Carvalho). Em primeiro lugar, o protagonista é baseado em um criminoso real.
“Valdetário Carneiro era integrante de uma família conhecida no Rio Grande do Norte por disputas eleitorais, e longas desavenças com outras famílias, provocando mortes dos dois lados. Mesmo assim, levava uma vida pacata numa oficina. Ele foi acusado de crimes que não cometeu, e chegou a cumprir pena. Na tentativa de ser inocentado, criou rixa com a polícia, e ameaçou delegados ao vivo numa rádio. Acabou se tornando um bandido meticuloso e cruel. Ele foi o pioneiro nesse modus operandi de atacar as cidades à noite, obstruindo a ação das forças de segurança pública”.
Escudo humano: fato
Ela prossegue: “A estratégia do escudo humano, colocando a vítima no capô e no teto dos veículos, também acontece de fato”.
Grupos fragmentados: fato
A respeito das desavenças no interior dos grupos, que constituem um dos principais motores de conflito da série, ela explica: “Como estes assaltos são recorrentes em todo o país, as quadrilhas costumam trazer integrantes de vários estados. Eles se dividem no investimento da logística para efetuar o assalto, e depois disso, divide-se o dinheiro e termina o compromisso. São coletivos criminais temporários”.
Protagonismo feminino: não é bem assim
A presença determinante de uma mulher (na figura de Dinorah Vaqueiro) entre os assaltantes a bancos da ficção chamou a atenção de ambos os pesquisadores. “Algo em que a série destoa da realidade vem do fato de que, nos assaltos contemporâneos, não se tem registro recorrente de atuação direta de mulheres no confronto”, enfatiza Jânia.
Aqui, claro, vale ressaltar novamente a liberdade criativa da bem-sucedida série de ficção.
Durval relembra a posição trágica ocupada pelas mulheres no cangaço. “Teve a presença simbólica de Maria Bonita, que aprendeu a atirar e se defender. Mas, no cotidiano, estas mulheres ainda realizavam todas as atividades consideradas femininas. Tinha uma divisão clara de trabalho. Além disso, a maioria das mulheres que fizeram parte do cangaço foram raptadas e estupradas. Maria Bonita é o caso raro de mulher que entrou no cangaço porque quis, quando se apaixonou por Lampião. Já Dadá foi raptada por Corisco, e estuprada durante anos”.
Por fim, o professor, que é autor do livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, alerta ao perigo de um discurso romantizado: “Cangaço Novo faz renascer a narrativa de que o cangaceiro era bandido por natureza, pelo sangue, por hereditariedade — como se o Nordeste fosse, por definição, um lugar ingrato e difícil, condenado a reproduzir esse tipo de comportamento. Isso é perigoso”, conclui.
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