‘O Império da Dor’: Repercussão da série se torna maior golpe contra máfia dos opioides nos EUA

Nem os US$ 4,5 bilhões pagos pela família Sackler em acordo com a justiça devem ter feito a mesma devastação aos criminosos da indústria farmacêutica que a excepcional série da Netflix faz agora

PUBLICIDADE

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria

Assistir à série O Império da Dor é uma vitória em si. Há algo de redentor ao vermos que alguém, enfim, conseguiu fazer seis capítulos para uma plataforma de streaming de escala de audiência planetária, muito maior do que os livros sobre o assunto lançados até então – O Império da Dor, de Patrick Radden Keefe, e An Empire of Deceit and the Origin of America’s Opioid Epidemic, de Barry Meier – oferecendo fatos, nomes e sobrenomes de uma das famílias mais poderosas e nocivas dos Estados Unidos, os Sackler.

Cena de 'Painkiller' Foto: Netflix

PUBLICIDADE

A história é odienta: um homem, Richard Sackler, cria uma medicação sabendo do estrago que ela fará, a coloca no mercado com publicidade agressiva sob autorização cheia de salamaleques da FDA, o órgão que controla os medicamentos nos Estados Unidos, e treina um exército de promotoras jovens, ambiciosas e de vestidos curtos para, se necessário, estarem prontas a negociarem o próprio com médicos que aceitarem indicar aos pacientes os comprimidos que elas levam nas bolsas. Um tráfico legal de drogas que devastou os Estados Unidos nos anos 90.

O remédio é real e se chama OxyContin, duas vezes mais potente do que a morfina e feito de um único ingrediente ativo, a oxicodona, que faz parte da família de substâncias químicas da heroína. Uma bomba com efeito duplo: ao mesmo tempo em que tirava um indivíduo do último grau da escala das dores garantia uma sensação de prazer intenso. Intenso e curto. Quem tinha dor se viciou sem querer, quem não tinha se viciou querendo. Ao final de uma estroinice de sete anos, de 1999 a 2016, envolvendo políticos, médicos, autoridades federais e outros laboratórios farmacêuticos, mais de 453 mil norte-americanos haviam morrido, vítimas do uso da medicação.

A série vai fundo no caso. Cria uma personagem, Edie Flowers (vivida por Uzo Aduba), uma investigadora do Ministério Público que luta sozinha contra o grande sistema para colocar os responsáveis atrás das grades. Edie somos nós, querendo justiça ou vingança. E sintetiza muitos mortos na persona de Glen Kryger, um mecânico que sofre um acidente doméstico e precisa se livrar das dores para trabalhar e sustentar a família. Seu médico, aliciado pelas oxyquetes, indica doses cada vez maiores de OxyContin pronto para acabar não só com a vida de Glen, mas com a de sua família. Ao o virem aspirando o pó do comprimido esmagado, reduzindo-se a uma condição sub-humana, ou queimando nas crises de abstinências de suas últimas esperanças, todos, inclusive a filha de cinco anos de idade, são sugados para a vala.

A série não termina, é um processo contínuo. Um estudo feito nos Estados Unidos indica que, só em 2012, os médicos prescreveram mais de 282 milhões de receitas de analgésicos opioides, incluindo OxyContin, Vicodin e Percocet. Seria quase um frasco para cada habitante dos Estados Unidos. E entre agosto de 2013 e dezembro de 2015, várias empresas farmacêuticas, entre elas a Pardue Pharma, responsável pelo OxyContin, pagaram mais de US$ 46 milhões a 68 mil médicos do país por meio de refeições, viagens e honorários para os incitar a receitar opioides. É a força do ‘jabá’ dos doutores, algo que não acontece só nos Estados Unidos nem está circunscrito à máfia dos opioides.

Os Sackler batizam universidades, salas de museus, centros de pesquisa, galerias e até a um planeta fora do Sistema Solar. Sim. O patriarca do império da dor, pai de Richard, acreditava que esse era o legado maior: ainda que ninguém da família tivesse sequer entrado em um teatro, era importante que seus nomes fossem impressos nessas placas.

As mesmas mãos que assassinavam pessoas em massa, amplificando sua produção de comprimidos mesmo diante dos processos na Justiça, poderiam destinar mais de US$ 1 milhão por ano a essas instituições, como a Fundação Arthur M. Sackler fez só em 2015. Uma investigação do jornal The Daily Caller, no entanto, assegurou que a família Sackler nunca apoiou nenhum projeto para financiar a cura do vício que ajudou a disseminar. Há muita frustração em Painkiller e um final aterrador, mas a vitória é decretada assim que alguém decide assistir a uma série que acessa uma história real, bloqueada por anos, escondida nos porões de algumas das piores almas que pisaram neste planeta.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.