Série sobre Isabel Allende a fez se perdoar: 'Foi terapêutico'

A escritora, tema de minissérie que estreia no Lifetime, falou sobre a alegria e dificuldade de revisitar o passado

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Por Mariane Morisawa
Atualização:

Isabel Allende já olhou para trás em diversos momentos de seus quase 80 anos, que ela completa na próxima terça-feira, dia 2 de agosto. A escritora publicou alguns livros de memórias, inclusive um sobre sua filha Paula, que morreu em 1992, aos 29. Agora, ela é tema de uma minissérie biográfica, Isabel: A História Íntima da Escritora Isabel Allende, exibida no Brasil pelo canal Lifetime, com episódios nesta sexta, 29, às 20h, sábado, às 19h50, e domingo, 31, às 20h10. “Talvez eu seja muito exibicionista”, disse ela, em tom bem-humorado, em entrevista coletiva virtual. 

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A minissérie começa justamente com Isabel Allende (interpretada por Daniela Ramírez) em Barcelona, quando recebe a notícia de que Paula está internada no hospital. Ela voa de volta ao Chile e passa o próximo ano ao lado da filha. Mesmo tendo escrito sobre o assunto, ela não conseguiu assistir à cena. “Ali, naquele momento, terminou o sucesso, o público, o champanhe e entrei em outra etapa da minha vida, que durou um ano, até Paula morrer. Depois disso, eu não era mais a mesma pessoa”, afirmou a autora de A Casa dos Espíritos, publicado há 40 anos. 

Esse período permeia todos os três episódios, que são bastante baseados no livro Paula, de 1994. “É uma dor tão forte que vive em mim, que aflora em um instante, inclusive agora ao responder às perguntas sobre ela”, contou a escritora. “Eu sou alegre e tenho uma boa vida, Paula me acompanha. Ao ver a série, senti em carne viva aquele momento exato.” Mas ela disse ter ficado feliz de assistir à série na velhice. “Vou me aproximando do fim da minha própria vida e da ideia da morte, de que tudo termina. Vou me desprendendo das coisas e me despedindo das pessoas, coisa que minha filha não teve tempo de fazer.”

A escritora Isabel Allende Foto: AP Photo/Francisco Seco

Mas a minissérie também vai à infância de Isabel, que foi criada pela mãe na casa do avô depois de seu pai abandonar a família. Foi a notícia de que o avô estava morrendo que a fez escrever A Casa dos Espíritos, como uma espécie de carta para ele. Na época, Isabel estava exilada na Venezuela, pois um golpe de Estado tinha derrubado seu primo, Salvador Allende, da presidência do Chile e instalado a ditadura brutal de Augusto Pinochet. 

Isabel Allende não se envolveu na produção da minissérie. “Não permitiria que ninguém se metesse no meu trabalho, por que vou me meter no trabalho dos outros?”, observou. Ela só pediu que a equipe criativa tivesse respeito com as outras pessoas, como seu primeiro marido. “Minha vida está exposta. Não posso dizer ‘isso é privado’, porque nada meu é privado. Mas outras pessoas têm suas vidas privadas e não têm por que ser expostas por minha culpa.” E ela afirmou que seu desejo foi respeitado.

Segredos

Seu atual marido, Roger Cukras, e seu filho, Nicolás, porém, mostraram preocupação com sua exposição. Sua mãe, Panchita, que morreu pouco antes da pandemia, também sempre indagava se essa vontade de falar da sua vida não a deixava vulnerável. “Minha resposta sempre era a mesma: que era o contrário disso”, afirmou. “Que a vulnerabilidade não está no que se conta, mas nos segredos que se guarda. Quem vai fazer chantagem comigo se eu já contei tudo? Quando penso em minha vida, cheia de altos e baixos, eu vejo que cometi muitos erros, mas nenhum tão grave que outras pessoas não tenham cometido. São erros comuns do ser humano, de ser mulher, de haver vivido na época em que vivi e não agora. Não me sinto vulnerável.”

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Os únicos segredos que guarda são aqueles que não são seus. E as 24 mil cartas que trocou diariamente com sua mãe desde sua adolescência, guardadas em um cofre. Essas nunca serão divulgadas. Isabel tinha um pacto com Panchita de que a primeira a morrer destruiria as cartas. Ela não teve coragem, mas Nicolás tem essa missão para quando a escritora não estiver mais aqui.

Daniela Ramírez interpreta a escritora Isabel Allende em série documental Foto: Lifetime

Curiosamente, assistir à minissérie foi terapêutico. “Vi resumidos 50 anos da minha vida. E ao vê-los assim entendi melhor por que tinha feito certas coisas. Perdoei muitos erros e entendo melhor minha própria personalidade.” Se pudesse, porém, dizer algo à jovem Isabel Allende que aparece na minissérie, seria: calma que há tempo, não é preciso tanta pressa. “A vida é longa, e há possibilidade de cometer erros e corrigir os erros ou viver com eles. Quando era jovem estava sempre fazendo. Por fazer, fazer e fazer, muitas vezes deixei de ser eu mesma, que é o mais importante de tudo.”

‘Uma mulher acompanhada de outras mulheres é invencível’, diz

Isabel Allende é uma das escritoras mais famosas do mundo, inspirando diversas mulheres a criar suas próprias histórias, especialmente na América Latina. “Muitas mulheres me disseram que começaram a escrever por causa de A Casa dos Espíritos, disse ela em coletiva por videoconferência. 

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Ela, por sua vez, se inspirou nas mulheres de sua vida: mãe, avó, aquelas que a ajudaram a criar seus filhos, sogra, agente, nora, filha. Foi em homenagem a Paula que ela criou, em 1992, a Fundação Isabel Allende, cuja missão é “investir no poder de mulheres e crianças para assegurar direitos reprodutivos, independência econômica e libertação da violência”. 

“Hoje as mulheres que me inspiram são essas que encontro por meio da fundação, que são mulheres vulneráveis, que passaram por traumas terríveis, que perderam tudo, às vezes até os filhos, e que seguem adiante”, afirmou. “Essas são as mulheres que me interessam. E não são exceções.”

Irmãs

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É a solidariedade feminina que lhe dá forças. “Somos irmãs. Então que estejamos juntas e conectadas”, acrescenta. “Pois uma mulher só é vulnerável. Uma mulher acompanhada de outras mulheres é invencível.” 

Porque, em sua opinião, é preciso ficar vigilante. “Vivemos em uma sociedade cujo pilar do patriarcado é a submissão das mulheres e de todos aqueles que não estão na hierarquia do poder. Nesse sentido, eu vivo preocupada”, revelou. Em seus 80 anos de vida, houve bastante progresso. “Mas falta muito a fazer, e isso me preocupa. O mundo está passando por uma grave crise. Sou otimista porque já vi diversas crises graves. Eu acredito na nova geração, que está disposta a mudar muitas coisas, inclusive estabelecer a equidade de gênero.”

Pessoalmente, não lhe falta nada. “Pelo contrário, tenho de sobra”, lembrou Isabel Allende. “Mas em termos do idealismo, de como eu gostaria que o mundo fosse, falta tudo: compaixão, igualdade, inclusão, beleza.” Ela tem esperança, porém. “Me fascino de ver os jovens com essa fluidez que permite aos homens assimilar e entender muitas coisas das mulheres, e vice-versa.” 

De sua parte, ela segue escrevendo. Todo dia 8 de janeiro, começa um novo livro. E, em breve, outras adaptações de suas obras podem chegar às telas, incluindo uma minissérie baseada em A Casa dos Espíritos, falada em espanhol.

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