Estrelas da dança dos EUA transformam livro de Clarice Lispector em balé de destaque em Nova York

Coreógrafas Jodi Melnick e Maya Lee-Parritz ficaram ‘arrebatadas’ por ‘Água viva’ e criaram espetáculo que tenta traduzir o texto da escritora brasileira em movimentos que unem delicadeza e impulso

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Por Marina Harss
Atualização:

THE NEW YORK TIMES | Elas passam horas assim: Jodi Melnick e Maya Lee-Parritz, ambas dançarinas e coreógrafas, estão em um estúdio de dança no centro de Nova York, testando um passo de dança. Movendo-se juntas, entram e saem da órbita uma da outra. Elas se acompanham pelo espelho e de vez em quando se falam em breves rajadas: “Vou me conectar com você aqui” ou “Tem uma coisa de lançar o braço ali”.

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Elas estão nas últimas semanas de preparação para Água Viva, um balé vagamente influenciado pelo romance de 1973 da escritora brasileira Clarice Lispector. O espetáculo está em cartaz no Hudson Hall, em Nova York.

O balé é um dueto e uma camada de solos. Às vezes as duas são entidades independentes, mas complementares. Às vezes se movem quase em uníssono. Elas também dançam de maneiras diferentes: Lee-Parritz é mais angular e rítmica, Melnick é mais delicada e detalhada, quase molecular.

Jodi Melnick e Maya Lee-Parritz em 'Água Viva' Foto: Lauren Lancaster/The New York Times

Melnick, 59 anos, coreografa na cena da dança pós-moderna há décadas e já se apresentou com Twyla Tharp, Mikhail Baryshnikov, Trisha Brown, Sara Rudner e outros. Ela também é uma professora dedicada. Lee-Parritz, agora com 31 anos e coreógrafa em ascensão, foi sua aluna uma década atrás na Barnard.

Desde as aulas da Barnard, professora e aluna passam algum tempo em estúdios de dança pela cidade desenvolvendo movimentos. “Começamos esta prática”, disse Melnick por telefone no início deste verão, “improvisando, às vezes de olhos fechados, escrevendo e conversando uma com a outra”. Tornaram-se parceiras artísticas, envolvidas numa conversa contínua sobre dança e vida.

Arrebatadas por Clarice

Durante uma dessas sessões, as duas perceberam que estavam lendo o mesmo livro, Água Viva, de Lispector, que nasceu na Ucrânia e em 1922 imigrou para o Brasil ainda criança com os pais judeus, que haviam sofrido nos pogroms.

As coreógrafas ficaram arrebatadas e comovidas, disseram, pelo sentido de urgência da escrita de Lispector. A autora escreve em Água Viva que está “tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais (...). Quero apossar-me do é da coisa”. A dança de Melnick e Lee-Parritz, com sua mistura de abstração e precisão, delicadeza e impulso, comunica uma urgência semelhante, um esforço para “revelar e descobrir algum tipo de verdade além das palavras”, como disse Melnick, para mostrá-la, dar-lhe forma, abraçá-la e, depois, seguir em frente.

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Em português, as palavras “água viva” significam tanto “água viva” quanto “água-viva” (o animal marinho); o título do romance também foi traduzido como “Fluxo da Vida”. A consciência era um tema frequente para Lispector, que já foi descrita como uma espécie de Virginia Woolf brasileira. “O que ela tenta fazer em todos os livros, incluindo Água Viva, é tocar o momento exato da vida”, disse Lee-Parritz, “exatamente quando está acontecendo. Você sente essa energia”.

É um sentimento de que falam as dançarinas quando descrevem a sensação do corpo e da mente nas performances – uma espécie de fluxo. “É como me sinto dançando e fazendo coreografias”, disse Melnick. “Posso expressar a sensação fisicamente, na tensão e na torção, no movimento do braço, na mandíbula projetada adiante, no olhar girando para trás. Quero que você veja e sinta esse momento”.

Câmera lenta

Suas palavras ficaram ilustradas em uma das passagens do balé, um solo de Melnick que as duas coreógrafas desenvolveram juntas. A semente foi uma série de frases de movimento criadas por Lee-Parritz, que ela gravou e depois reproduziu para Melnick em câmera extremamente lenta. Melnick então imitou o movimento, mantendo todos os efeitos idiossincráticos. “Decidi aprender como se estivesse acontecendo comigo desse mesmo jeito, em câmera lenta”, disse Melnick. “Virou uma coisa muito íntima, muito dramática”.

No solo, ela se movimenta em um legato exagerado, como se estivesse nadando na cola. Quando lança os braços, seus olhos seguem a mão que varre o ar, a cabeça inclinada, o rosto iluminado por uma expressão quase arrebatadora. “Não sou uma pessoa emotiva”, disse Melnick, “mas decidi que levaria isso adiante”. Essa proeza física, por sua vez, ecoa o tom das passagens do livro de Lispector. “Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino”, escreve ela.

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Essa imersão na sensação do momento – que Lee-Parritz descreve como “explosões de sublimidade” – é um subtexto da peça, assim como a transcendência e a dualidade da beleza. “Este trabalho tem uma relação com a beleza, a forma e a simplicidade”, disse Lee-Parritz, “mas com uma consciência de decadência e feiura”.

O processo pelo qual as duas coreógrafas criaram a passagem em câmara lenta, trocando frases e depois moldando-as em conjunto, é um exemplo perfeito da fluidez de sua colaboração. No estúdio, elas se assistem e dão sugestões, tiram dúvidas e às vezes até se desentendem. Em um ensaio semanas atrás, quando algo não estava funcionando, Melnick sugeriu voltar ao assunto mais tarde. Lee-Parritz disse secamente: “Vamos conversar sobre isso agora”. Para elas, criação é negociação.

Melnick definiu o relacionamento delas como fraternal: às vezes ela se sente a irmã mais velha de Lee-Parritz, disse, “mas o relacionamento também muda rápido”. Ela se sente confortável no papel de irmã, disse, no qual já caiu antes com outros artistas, tanto mais jovens quanto mais velhos, inclusive Sara Mearns, estrela do New York City Ballet.

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Balé e escrita

O processo colaborativo de Melnick e Lee-Parritz representa o afastamento mais significativo entre o balé e a escrita de Lispector, produto de uma consciência singular. O balé é, em grande parte, produto de dois cérebros e dois corpos trabalhando em conjunto. “Estou experimentando o corpo dela ao meu lado”, disse Lee-Parritz, “e vemos esse tipo de transmissão misteriosa entre o corpo dela e o meu, seus ossos, seu cabelo, a maneira como ela fala, tudo. Não consigo nem dizer qual é o meu vocabulário e qual é o dela”.

Em seu livro, Lispector escreve sobre uma “linha frágil”, um “sopro que aquece o decorrer das sílabas”. Não é difícil imaginar um processo semelhante ocorrendo entre Melnick e Lee-Parritz. Embora cada uma às vezes possa fazer suas próprias coisas, elas estão sempre profundamente conectadas.

“É isso que estamos tentando fazer”, disse Lee-Parritz. “Estamos tentando tocar essa frágil linha condutora, ampliá-la e incorporá-la”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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