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‘A Ford perdia dinheiro no Brasil e agora está no azul’, diz Rogelio Golfarb

Para vice-presidente da Ford na América do Sul, País tem muita lição de casa para fazer quando o assunto é carro elétrico

Por Tião Oliveira
Atualização:
Foto: Ford/Divulgação
Entrevista comRogelio GolfarbVice-presidente da Ford na América do Sul

Pouco mais de três anos após encerrar a produção de veículos no Brasil, como parte de uma reestruturação global, a Ford saiu do vermelho e celebra os bons resultados no País. Em entrevista exclusiva ao Estadão, a primeira desde então, o vice-presidente da Ford na América do Sul, Rogelio Golfarb, falou sobre as mudanças no modelo de negócios, incluindo a aposta na unidade brasileira de desenvolvimento de novas tecnologias, que faturou R$ 500 milhões em 2022, e o calendário de lançamentos, com 10 novos modelos em 2023. Além disso, o engenheiro e ex-presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) afirma que o futuro do setor é a eletrificação e que o Brasil tem tudo para ser protagonista dessa revolução.

Rogelio Golfarb falou sobre as mudanças no modelo de negócios, incluindo a aposta na unidade brasileira de desenvolvimento de novas tecnologias, em entrevista exclusiva ao Estadão Foto: Ford/Divulgação

Como a Ford está hoje no Brasil?

A Ford está passando por um processo global de reestruturação, com foco em SUVs, veículos comerciais e picapes. Além disso, a eletrificação representa uma transformação brutal para a indústria, que afeta todas as operações. No Brasil, chegamos à conclusão de que precisávamos de um modelo de negócio diferente. E entendemos que essa transformação tecnológica, além ser de veloz, vai afetar o comportamento do consumidor, tanto na forma como ele enxerga quanto na maneira como utiliza o produto. É importante dizer que optamos por ter no Brasil um centro de pesquisa e desenvolvimento. Essa unidade de negócios tem mais de 1.500 especialistas focados na criação de soluções para produtos globais. Cerca de 80% do tempo deles é dedicado a projetos que vão para os Estados Unidos, Europa e China. Atuamos na fronteira da tecnologia. Somos muito competitivos, criamos patentes e, em 2022, geramos R$ 500 milhões em receita. É algo bem diferente do que nossos competidores fazem. O fato de que desenvolvemos e exportarmos tecnologia é importante para o Brasil, inclusive.

A empresa está no azul?

Certamente. Antes a empresa perdia dinheiro no País e hoje está positiva. Além disso, agora atuamos em um modelo de negócios que é mais resiliente às crises. O setor está passando por um momento difícil e a Ford do Brasil está positiva. Atingimos nosso objetivo de negócios. Além de lucratividade, estamos bem nos segmentos em que atuamos. Após 18 meses do lançamento, a (linha de vans e furgões) Transit foi o produto que mais cresceu em vendas. Além disso, a (picape média) Ranger está com ótima performance. O Mustang é líder de vendas entre os esportivos e os outros produtos também estão indo bem. Nossa ambição é continuar crescendo no mercado brasileiro.

Atualmente, a Ford tem mais lançamentos do que quando produzia no Brasil...

Sim. Neste ano estamos lançando dez produtos novos. Ou seja, quase um por mês. E estamos trabalhando fortemente na área de veículos comerciais. Acabamos de lançar o Ford Pro, que é uma estrutura de apoio a frotistas, seja para quem tem um ou 1.000 veículos. Temos ainda uma área de conectividade focada em experiência do consumidor, com uma série de produtos e serviços que outros (concorrentes) não têm.

Quais são os 10 novos produtos que a Ford vai lançar no Brasil em 2023?

Já lançamos a (picape grande) F-150, a (picape compacta) Maverick híbrida chega em breve, a Transit automática, a Transit elétrica já está em testes com clientes, O (SUV elétrico) Mustang Mach-E também vem, assim como a Transit chassi-cabine, que vai disputar um segmento que representa 60% das vendas desse tipo de veículo, além da nova Ranger. Sobre os outros três, não posso falar ainda.

(Nota da redação: embora a Ford não confirme, esses carros devem ser o SUV Territory e o Mustang renovados, além do SUV grande Everest.)

Como fazer tantos lançamentos se os carros são importados? O Brasil não entra numa fila?

Há toda uma programação, mas os novos processos trouxeram agilidade e a oportunidade de trazermos de forma muito rápida o que temos de melhor no mundo. Evidentemente, não são todos os produtos que se aplicam ao mercado brasileiro. Os 20% restantes daquele grupo de 1.500 (pessoas) do qual falei são dedicados a avaliar e testar produtos que podem vir ao Brasil. Por isso, optamos por modelos como o Mustang e o Bronco. São carros que têm a ver com o brasileiro e que foram testados rigorosamente antes de virem ao País. Isso garante a qualidade desses produtos. Também temos um foco enorme em tecnologia. No caso da Transit, por exemplo, se o consumidor autorizar, podemos monitorar até 3.500 modos de falha. Também é possível entender se algum tipo de falha ocorre em uma determinada região do País e por que isso ocorre. Isso se transforma em satisfação do cliente.

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Qual é a importância da conectividade para o consumidor e para a Ford?

A palavra é tecnologia e que faz a sua vida melhor. Essa é a espinha dorsal do nosso pensamento. Este prédio onde estamos é totalmente conectado e fica em uma região onde estão várias empresas da área de tecnologia (na zona sul da capital paulista). E isso não é por acaso. A reestruturação do modelo de negócios passa pela nossa visão de que essa evolução tecnologia vai acontecer de forma muito mais rápida do que a maioria das pessoas acredita. E isso vai mudar muito a percepção sobre o produto e a competitividade.

Os sistemas vão ser os grandes diferenciais entre os produtos. Esse é o foco. Vamos olhar a tecnologia em alguns capítulos. Conectividade é um. Sistemas autônomos (de condução) é outro. E eletrificação é outro. Para nós, da Ford, tudo isso acontece ao mesmo tempo. A diferença é que acreditamos que essa transformação vai ser muito rápida. É claro que ainda temos poucos carros elétricos no Brasil. Mas as vendas cresceram 44% no ano passado. Vou dar uma ideia do que a Ford está fazendo. Em 2023, a Ford vai produzir 600 mil veículos elétricos. Em 2026, portanto daqui há apenas três anos, serão 2 milhões. No período de 2022 a 2026, a Ford vai investir US$ 50 bilhões nesse processo.

Acabamos de lançar novos sites de produção em Kentucky e no Tennessee, com investimentos de US$ 11,4 bi, além de US$ 3,5 bi na fábrica de baterias em Michigan, que usa fosfato de ferro, e não lítio, pra não ficarmos reféns de apenas uma tecnologia. A partir de 2026, essa fábrica vai produzir 400 mil baterias por ano. O Mach-E (SUV 100% elétrico do Mustang) vende tanto que não temos para entregar. A (picape grande) F-150 Lightining (elétrica) também. Já e E-Transit (versão elétrica), está em testes no Brasil, é líder de vendas no mercado de vans elétricas nos EUA. Além disso, os investimentos são incrementais, e não substituem outros. Acabo de voltar dos EUA e vi muita coisa nova que, apesar do meu conhecimento sobre tecnologia, me surpreendeu profundamente. Não vamos nos esquecer de que o brasileiro gosta de tecnologia e adota novas soluções como poucos no mundo. É por isso que apostamos no centro de pesquisa. Conseguimos desenvolver novas tecnologias aqui e somos competitivos.

Quando haverá a “mudança de chave” para a eletrificação veicular?

É muito difícil falar em datas, mas vai ser muito rápido. Até bem pouco tempo muita gente dizia que o grande problema do carro elétrico era a baixa autonomia. Pois a autonomia do elétrico já é maior do que a de carros com motor a combustão. A velocidade com que essas questões estão sendo resolvidas é enorme. No Brasil, já anunciamos a chegada da Maverick híbrida, uma picape urbana. Esse recurso funciona bem para o segmento. No caso da Transit, trouxemos também a versão elétrica. Há ainda o Mustang Mach-E, que virá neste ano. Ou seja, para cada segmento, há um tipo de solução mais adequado. Mas o que está claro é que a rota tecnológica leva à eletrificação. Até quando a gente fala de célula a combustível, que ainda está chegando, é eletrificação. A diferença é a forma de geração de energia. Em outros mercados, estamos vendo que os preços dos carros elétricos estão muito próximos dos de modelos com motor a combustão. Além disso, os elétricos são produtos mais seguros, modernos e “limpos”. O Brasil é o sexto maior mercado de automóveis do mundo. Mas temos muita lição de casa para fazer nesse sentido.

O que o Brasil precisa fazer para desenvolver esse mercado?

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Me preocupa menos a questão da recarga do que o modelo de política industrial. A primeira vai ser resolvida rapidamente. Não estou falando de previsões futuristas, mas de tecnologias que eu conheço. O Brasil tem uma base de suprimentos e uma cadeia de manufatura muito importante. Assim, tem tudo para ser um ator chave mundialmente. Mas precisa se integrar nas cadeias globais. Existe uma disputa pela dominância dessas tecnologias e de mercados. Há quatro pilares nesse sentido. O primeiro são os minerais. Veja, o Brasil tem terras raras e minerais importantes para o processo de eletrificação. Há uma disputa global para a utilização e garantias de utilização desses materiais. Porém, o Brasil não entendeu ou não tem uma estratégia para isso. O segundo são motores elétricos e baterias. O terceiro é a geração de energia, que não basta ser limpa, mas precisa ser descentralizada. O Brasil tem uma matriz excepcional. O potencial para geração de energia fotovoltaica e eólica é imenso. No caso da solar, vai de norte a sul, de leste a oeste. Mas precisamos desenvolver formas de expandir rapidamente a geração principalmente de energia solar. Porém, hoje isso é feito de forma lenta para a demanda que vai surgir em breve, e com tecnologias e equipamentos importados. O quarto pilar é a conectividade. Quem vai ganhar essa corrida está pensando nesses quatro pilares como política de Estado. Essa é uma grande oportunidade para o Brasil. Penso que há uma nobre missão para o recriado Ministério da Indústria, que é coordenar essa política. Porque há várias pastas envolvidas, como Minas e Energia, Comunicações, Ciência e Tecnologia... O Brasil tem tudo para fazer isso, ao menos do ponto de vista intrínseco.

O senhor acredita na produção de veículos elétricos no Brasil?

Sim, mas como engenheiro eu sonho com uma produção em que boa parte dos componentes seja desenvolvida aqui e não que a indústria seja de montadoras de CKD (veículos feitos no País apenas com peças importadas). As tecnologias de produção estão espalhadas pelo mundo todo. A expectativa de produzir carros elétricos, não só no Brasil, apenas com peças apenas locais não deverá se tornar realidade. Mas, como uma política mais bem ajustada é possível ter produção local de soluções inclusive para veículos autônomos (que rodam sem motorista). Na pista de Tatuí (interior de São Paulo), que faz parte do centro de pesquisas da Ford, já estamos instalando uma antena de 5G dedicada e preparando a pista para testar tecnologias de veículos autônomos. Ou seja, a Ford escolheu investir no desenvolvimento de tecnologia no Brasil e isso está dando muito certo.

As montadoras viram que é preciso diversificar o negócio, e não focar apenas em produção...

Cada empresa tem o seu modelo de negócio. Mas uma coisa é pensar em Ford e outra, em políticas para o País. No modelo de negócios da Ford, neste momento de transformação brutal, a ênfase é no desenvolvimento de tecnologias e produção. Se você me perguntar sobre o Brasil, basta ver o tamanho do País, da população e da economia. O Brasil precisa ter - e tem - um agronegócio pujante. Mas também precisa ser relevante no desenvolvimento de tecnologias e ter uma indústria e uma área de serviços importante. Não dá para comparar o Brasil a outros países que tiveram de fazer escolhas duras porque não têm essa riqueza que o Brasil tem. Mas também é preciso ter ambição. No mundo todo, há uma enorme velocidade na chegada de novas tecnologias. A única certeza é de que elas vão mudar. Por isso, é preciso investir em educação. Criamos um programa batizado de Ford Enter, em parceria com o Senai, que oferece formação em programação para jovens de baixa renda. Até 2025, essa área terá um déficit de cerca de 500 mil profissionais.

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Como o senhor enxerga o mercado brasileiro de veículos nos próximos anos?

Sou realista no curto prazo e otimista no longo. Primeiro, é preciso entender exatamente onde estamos. O mercado está estável em 2 milhões de unidades, que foi o volume de vendas durante o ápice da pandemia. A capacidade instalada de produção é de 4,5 milhões, as vendas no mercado interno são de 2,1 milhões e a projeção para este ano é muito próxima disso. Além disso, 50% das vendas devem ser para grandes frotistas. Dos 1 milhão de consumidores finais, 60% compram à vista. Ou seja, quando a gente olha para o potencial dessa indústria, é algo bastante preocupante. A indústria precisa de maior escala. Entendo que o negócio passa por um momento bem difícil. Além disso, em 2022 as empresas do setor receberam quase US$ 11 bilhões vindos de fora. Alguns vão dizer: “Isso é dinheiro para investimento.” Mas as empresas precisam gerar caixa para poder investir. Quando elas não conseguem ter recursos para investir em novos produtos, que é a base do negócio, é algo muito preocupante.

Sobre a venda das fábricas em Horizonte (CE) e Camaçari (BA), como estão as negociações?

Estamos negociando (Camaçari) com a (marca chinesa) BYD. Estamos muito envolvidos nesse processo, mas ainda não dá para dizer quando ele deve ser concluído. No caso do Ceará, não é diferente. Não vou abrir quem são os interessados, mas ainda não temos uma definição.

Após três anos do encerramento da produção, como está a imagem da marca no Brasil?

Acompanhamos intensamente a satisfação do cliente com o produto e a percepção da marca. Passamos por uma fase em que as pessoas ficaram surpresas e não entendiam o caminho que a Ford iria tomar no Brasil. Hoje percebemos que houve uma mudança significativa por parte do consumidor, porque os caminhos estão mais claros para ele. Estamos aqui, investindo fortemente em tecnologia, em educação e trazendo ao Brasil o que temos de melhor no mundo. Estamos trabalhando freneticamente para entregar produtos de alta qualidade. No caso da contribuição para o País, estamos exportando tecnologia feita no Brasil e fomentando um projeto que vai crescer e apoia jovens em um tema que é estrutural para o País, que é a capacitação em programação. Evidentemente, é preciso tempo para que as pessoas entendam esse caminho que a Ford tomou. E, na medida que essa transformação tecnológica avance, muitas coisas vão ficar ainda mais claras.

A economia do Brasil anda patinando...

O Brasil precisa de crescimento econômico sustentável. E nós precisamos encontrar o caminho para isso. O setor de veículos depende disso.

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