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‘Bets são o novo crack’, diz membro do grupo Jogadores Anônimos, que reúne viciados em apostas

Entidade voltada para a recuperação de apostadores compulsivos nos jogos online diz que número de viciados vem crescendo, destruindo as finanças familiares dos envolvidos; para Instituto Jogo Legal, problemas serão resolvidos com a regulação das bets

Foto do author Vinícius Novais
Foto do author Márcia De Chiara
Atualização:

O avanço dos jogos online no País e o aumento do número de adeptos às bets, depois da sua legalização em 2018 pelo governo de Michel Temer, preocupa o grupo de Jogadores Anônimos (JA), entidade voltada para a recuperação de viciados. “A bet é o novo crack, é uma pandemia. A tendência dos últimos dois anos e para os próximos dois anos é que isso cresça muito”, disse um membro do JA, sob a condição de anonimato, em uma reunião realizada na quinta-feira, 5, à noite, acompanhada pela reportagem do Estadão.

O grupo se define como uma “irmandade cujos membros compartilham suas experiências, energia e esperança para parar de jogar, manter-se abstinente e ajudar outros jogadores compulsivos a fazerem o mesmo”. Embora não colete dados ou estatísticas formais, um membro do JA relata um aumento significativo nos casos e afirma que o impacto das apostas afeta homens e mulheres de forma semelhante, independentemente da classe social.”

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O membro relata que há casos em que carros, casas, economias de anos são perdidas nas bets e outros jogos de azar. As dívidas dos viciados muitas vezes chegam a R$ 2 milhões. “As histórias que mais me doem são as de pessoas que saem de casa com o dinheiro para comprar o almoço para a família e deixa tudo no caça-níquel”, conta.

Na visão do neurocientista Álvaro Machado Dias, professor doutor da Unifesp e sócio do Instituto Locomotiva, o tipo de jogo oferecido pelas bets tem similaridade com videogames, pois precisam ter a medida certa de dificuldade para que o jogador pense que pode ganhar. “O mesmo desenho comportamental, tudo igual. É como também se vende fichas de fliperama. A pessoa sente que na próxima ele vai bater a máquina. Na próxima, vai virar o campeão”, diz.

Mas, segundo o Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL) - uma ONG que trabalha pela legalização e criação de um marco regulatório para essas atividades -, é “fácil culpar as bets”. “Pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde) comprova que 97% dos jogadores têm uma relação saudável com as apostas. No Reino Unido, onde as bets são mais comuns, só 1% dos apostadores têm problemas graves e precisam ficar abstêmio por meio de mandatos de auto-exclusão, como previsto nas normativas do Ministério da Fazenda”, conta Magno José, presidente do IJL.

O Estadão apurou outros números: a OMS estima que até 5,8% da população pode preencher os critérios para o diagnóstico de ludopatia, a compulsão pelo jogo, e a porcentagem de pessoas impactadas pela prática é pelo menos três vezes maior.

O instituto afirma que os problemas dos jogadores compulsivos só serão resolvidos com a regulação das bets, que entra em vigor em 2025. “O problema foi a falta de regulação durante longo período. O governo Bolsonaro não regulou porque o jogo é uma pauta negativa para os conservadores. A consequência da falta de proteção aos apostadores que observamos hoje é por causa desses anos em que o setor esteve desregulado”, explica José.

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No Jogadores Anônimos, a principal medida para superar o vício é tirar o controle financeiro da pessoa. O Pix, o meio eletrônico de pagamento, é a principal ferramenta para os aplicativos de aposta, por causa da rapidez da operação. Os viciados em jogo, por vezes, colocam sua vida em risco e afetam a vida dos familiares. Segundo o JA, o objetivo dos tratamentos deve sempre ser trazer de volta a serenidade para a pessoa.

Viciados nas bets compartilham suas histórias Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Veja histórias anônimas de viciados nas bets que estão em recuperação no JA:

“Não tive dinheiro para viajar para o enterro do meu avô”

Ter o celular sempre à mão impulsiona o vício Foto: Werther Santana/Estadão

“Quando meu avô morreu, lá na Bahia, eu não tinha como ir. Já estava endividado e inventei desculpas para minha família”. Esse relato é de um viciado em jogos de azar, mais especificamente em apostas esportivas online, as bets. Economista, empregado em um banco e com uma renda líquida de R$11 mil, em dois anos, ele contraiu uma dívida entre R$150 mil e R$ 200 mil apostando em esportes.

“Minha esposa sugeriu de trocarmos o sofá e o fogão. A gente, como viciado, mente e manipula, então a convenci de deixarmos para depois”, conta Henrique, nome fictício usado para identificar o jogador que prefere manter o anonimato. Ele conta que, aos poucos, foi deixando de fazer coisas comuns pela bagunça que as bets fizeram em suas finanças. “Meus gatilhos eram todos financeiros. Uma vez quebrou o carro e eu pensei ‘vou jogar aqui para ganhar o dinheiro e não ter de mexer na minha conta’, não ganhei, e o carro ficou quebrado um tempo”, relata.

Sua história com as bets começou em 2016, quando era estagiário em um banco. “Tinha colegas que brincavam com as bets, eu tinha medo de me envolver, de fazer meu cadastro. Até que um dia falei ‘vou fazer aqui, só pra brincar’”, conta. Começou com valores pequenos, de R$10, R$20, mas com o tempo, foi aumentando. “Uma vez coloquei R$ 50 e ganhei R$100, ai pensei ‘se eu tivesse colocado R$ 500, falei para minha esposa, mas ela não ligou muito.”

Ele já jogava valores por volta de R$1 mil, R$ 2 mil, mas foi em 2022 quando sua compulsão pelo jogo piorou muito. Após descobrir um câncer, com o medo da morte, Henrique fez das bets uma fuga e começou a jogar ainda mais. Ao longo de um dia, gastou o valor de todo salário. Em uma única aposta, ele chegou a apostar R$ 8 mil, aproximadamente 70% de sua renda. Até mesmo o FGTS, que sacou pela doença, foi para o jogo.

Além de apostas esportivas, os cassinos online também são perigosos para os jogadores compulsivos Foto: Werther Santana/Estadão

Foi então que começaram os empréstimos, seja com bancos ou com a família e amigos. Como uma bola de neve, a situação ia sempre piorando. Um empréstimo vinha para pagar o outro, pagar as despesas do cotidiano e claro, apostar mais. Dessa forma, era obrigado pegar cada vez valores maiores.

“Na minha cabeça, eu tinha perdido a mão. Pensava que com o próprio jogo eu ia ter um ganho, resolver o problema, então pararia de jogar e vida que segue”, explica. O prazer era tanto que Henrique cogitava viver das apostas, mesmo que só estivesse perdendo dinheiro. Ele jogava o dia inteiro, afinal, era só sacar o celular e abrir os aplicativos.

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Apostava durante o trabalho, enquanto estava com amigos e até dirigindo. “Saia com minha esposa e nossos amigos e, no meio do jantar, eu ia ao banheiro jogar. Era só pela dopamina do jogo.” Após perder 30 apostas seguidas, ele acertava uma e, desse acerto, vinha a esperança de recuperar tudo e até lucrar.

Além de deixar de trocar a mobília da casa, Henrique relata que a ausência no velório do avô foi um dos picos de sua compulsão. “Meus avós moram lá na Bahia, meu avô já estava doente e eu já pretendia visitá-lo, mas eu estava sem dinheiro. Em julho de 2023, meu avô faleceu. Minha família falou para irmos lá nos despedir dele e eu poderia ter ido. Fazia home office e a empresa era super maleável com isso. Mas, eu não tinha dinheiro para ir, inventei desculpas, culpei o emprego e não fui, deixei de fazer a viagem”.

Saia com minha esposa e nossos amigos e, no meio do jantar, eu ia ao banheiro jogar

Jogador Anônimo

Henrique escondia da família e amigos seu vício e os problemas financeiros que se estabeleciam. Em casa, sua responsabilidade era pagar o aluguel e a conta de luz. “Em dezembro de 2023, acordamos um dia com a Enel cortando nossa luz”, relata. A empresa faz o desligamento depois de três meses sem pagamentos. O economista tentava administrar as contas, de forma a nunca ficar um trimestre sem pagar, mas a situação já estava inviável.

Com a luz cortada, sua esposa descobriu o vício de sete anos do marido. Ao contrário do que ele imaginava, ela o ajudou, apoiou e o levou para os Jogadores Anônimos. O grupo se define como uma “irmandade cujos membros compartilham suas experiências, energia e esperança para parar de jogar, manter-se abstinente e ajudar outros jogadores compulsivos a fazerem o mesmo”.

Em agosto de 2024, Henrique já está há quase nove meses sem jogar e conta que já não tem mais vontade de jogar. Atualmente ele faz parte do Jogadores Anônimos e ajuda outros apostadores a lutarem contra sua compulsão.

‘O que me destruiu foram as bets’

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Os viciados tendem a esconder o vício da família Foto: Daniel Teixeira/Estadão

O jogo esteve presente na maior parte da vida de Osnan. Desde os 25 anos, ele jogava em caça niqueis que infestavam os bares e padarias, “Eu apostava R$ 25, R$ 50. Perdia R$ 500 às vezes, mas não era algo que atrapalhava minha vida”, explica. Até que teve contato com as bets. Começou nas apostas esportivas, mas no próprio aplicativo, os cassinos online chamaram sua atenção. “O que me destruiu foram as bets”, aponta.

Osnan hoje entende que, quando começou a jogar em caça níqueis, já era compulsivo. Mas, por causa do funcionamento das máquinas, que só permitiam até R$10 por giro, sua situação não se agravava tanto. “Lá (nas bets) eu podia dar uma apertada de R$100 a R$200 para girar a roleta.”

Amigos e colegas de trabalho o convenceram a começar a apostar em jogos de futebol, mas ele mantinha as apostas na casa dos R$ 50. No site de uma das bets, a aba de cassino online o levou para as roletas de slots onde apostava muito mais. “Fui fisgado, estava jogando R$ 5, R$ 10 e fui aumentando. Coloquei R$ 40 e pagou R$ 8.200. Aí fisguei o anzol, a partir desse momento comecei a querer sempre mais”, relata.

Osnan, que trabalhava na área financeira e tinha uma boa renda, viu sua vida começar a desmoronar por causa do jogo. ‘Eu perdia meu salário em uma hora, isso sendo otimista. Em alguns momentos, foi até mais rápido’, relata. Com o tempo, as contas básicas começaram a se acumular: energia, água, internet, TV por assinatura. Desesperado, ele passou a recorrer a empréstimos.

Os viciados pediram para permanecer anônimos Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Ele conseguia dinheiro com bancos, amigos e familiares, mas muitas vezes o deixava diretamente na roleta online. Quando esgotou essas opções, começou a pegar empréstimos com um agiota, a juros mensais de 10%. “Chegava o fim do mês e eu não tinha como pagar. Então, pedia para ele adiar o pagamento”, explica. Assim, os juros se acumulavam, criando um efeito bola de neve sobre a dívida.

A dívida chegou a R$ 21 mil, e um “amigo do coração” o emprestou dinheiro para poder se livrar do agiota - Osnan está o pagando até hoje. Três meses depois a história se repetiu. “Parece que esses sites pensam ‘esse cara tá há um tempo sem jogar, vou dar alguma coisa para ele voltar’ e eu voltei”. Dessa vez a dívida com o agiota, o mesmo da outra vez, bateu R$ 25 mil. Na ocasião, o cunhado refinanciou seu carro para ajudá-lo. “Além do agiota, eu tinha outras dívidas com parentes e amigos que eu ia pagando quando dava.”

Eu perdia o salário em uma hora. Em alguns momentos, foi até mais rápido

Jogador Anônimo

O problema se resolveu até maio de 2024, quando voltou a jogar e, pela terceira vez, recorreu ao agiota. A dívida chegou rapidamente a R$ 22 mil e, mais uma vez, seu cunhado emprestou dinheiro para quitar o débito. Desde então, Osnan entrou nos Jogadores Anônimos (JA) e contou a todos que era viciado em jogo, apagou o contato do agiota e passou a seu cunhado seu controle financeiro. Hoje em dia, não sente mais vontade de jogar. “Quando eu contei para as pessoas, todo mundo me apoiou e me parabenizou pela coragem de admitir o problema”, conta ele, acrescentando que está gradualmente pagando suas dívidas. “Até está sobrando um dinheiro no fim do mês.”

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Mas a realidade foi outra nos últimos anos. Depois de deixar salários inteiros e até uma rescisão de R$ 150 mil na roleta, Osnan não conseguia fazer nada. “Deixei de viajar, fazer tratamento dentário. Não fiz reformas pequenas que minha casa precisava, coisas como pintar uma parede, trocar uma porta. Não consegui constituir uma família”, relata.

“Para mim, o pior foi quando eu tinha gasto R$ 8 mil no jogo e, no dia seguinte indo para o trabalho, eu queria comer um pão na chapa com um café, que tomo sempre em uma padaria, e eu não tinha dinheiro. Nesse momento, pensei ‘o que eu fiz da minha vida’, mas essa fase passou”, conta. Ele diz que está muito otimista com seu futuro e feliz pelas pequenas coisas, como um café na padaria, que voltaram a acontecer.

‘Com a pandemia, o jogo ficou recorrente’

O Jogadores Anônimos segue a mesma metodologia do AA Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Quando começou o lockdown em março de 2020, João perdeu a mão no jogo. “Com a pandemia e o isolamento social, o jogo online ficou recorrente para mim”, conta. O primeiro contato que João teve com os jogos online, as bets, foi no início dos anos 2000. Na época, morava na Europa e lá as casas de apostas são comuns. Quando voltou ao Brasil, as bets começavam a atuar ainda de forma clandestina por aqui.

Em 2016, ele fez o cadastro em sites de apostas para conhecer como funcionavam no Brasil. Inicialmente, as apostas eram a título de brincadeira e esporádicas. Gastava entre R$ 10 e R$ 20. “Apostava uma vez por semana, ficava dois meses parado, eu tinha um certo controle”, lembra.

A compulsão pelo jogo, no entanto, veio à tona com o isolamento social e também com o ganho que ele conseguia com algumas apostas. João começou aumentar a frequência do jogo e migrar para outras modalidades além do futebol, como basquete e outros esportes comuns nos Estados Unidos.

Como tinha vezes que conseguia ganhar um valor alto, superior ao seu salário, ele chegou a acreditar que poderia parar de trabalhar e viver só do jogo. Mas, na sequência, perdia tudo que tinha apostado.

Isolado, a compulsão pelo jogo só foi aumentando, a ponto de ele apostar todos os dias da semana e gastar com o jogo entre seis e oito horas por dia. João conta que chegava a se trancar no banheiro ou no quarto para jogar escondido da família. “Dizia que estava trabalhando.”

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Junto com a compulsão, os valores das apostas e das dívidas cresceram. “Perdi a noção do valor do dinheiro: uma aposta de R$ 5 mil era para mim a mesma coisa que apostar uma ficha”, compara. Para alimentar o jogo, ele fez empréstimos de R$ 20 mil, estourou o limite de cheque especial de todas as contas bancárias e contraiu dívidas no cartão de crédito, mas escapou dos agiotas.

Em 2021, João vendeu um carro para pagar as contas e apostar mais. A tentativa era recuperar o dinheiro perdido. No entanto, as dívidas só foram aumentando e bateram R$ 300 mil.

O problema foi escancarado para a família na virada deste ano, quando ele disse para a esposa que não tinha dinheiro para pagar a prestação do apartamento nem fazer a tradicional viagem de férias de janeiro.

A primeira reação da esposa foi sair de casa. Depois, entendeu que se tratava de uma doença e encaminhou o marido, com a ajuda da cunhada, para o grupo Jogadores Anônimos (JA). Antes de entrar para o grupo, João acreditava que conseguiria superar a compulsão pelo jogo sozinho e que se tratava de um problema financeiro.

Desde janeiro, João frequenta as reuniões do grupo de apoio. Até a última semana, estava há 238 dias sem jogar. Ele se reconciliou com a mulher e conseguiu reduzir a sua dívida pela metade.

Perdi a noção do valor do dinheiro: uma aposta de R$ 5 mil era para mim a mesma coisa que apostar uma ficha

Jogador Anônimo

Oito meses depois de frequentar as reuniões do grupo JA, descobriu que a questão financeira é apenas uma das facetas de um problema mental maior, que é a compulsão. “Percebi que a parte psicológica vem em primeiro lugar: preciso estar bem mentalmente para conseguir pagar as dívidas e me manter longe do jogo.”

Depois dessa experiência sombria, João se diz preocupado com a legalização das bets. Segundo ele, o aumento da publicidade dos jogos online, patrocinando inúmeros eventos esportivos, pode despertar o interesse das pessoas para o mundo dos jogos, especialmente crianças e pré-adolescentes.

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Os jogadores não querem mais jogar Foto: Daniel Teixeira/Estadão

*Colaborou Lucas Agrela

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