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BNDES, com 1,7% de funcionários pretos, cria grupo pró-diversidade e leva debate ao setor público

Coordenador do grupo de trabalho do banco, Marcos Mota afirma que mudança não é tão rápida quanto em empresas privadas: ‘Não tenho como mudar magicamente o BNDES’

Foto do author Beatriz  Capirazi
Por Beatriz Capirazi
Atualização:

O Grupo de Trabalho de Empoderamento Negro para a Transformação da Economia, instituído pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, em 23 de maio, reacendeu a discussão sobre programas de trainees com foco em equidade racial no País.

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A ação, que gerou polêmica em setembro de 2020, quando o Magazine Luiza lançou seu primeiro trainee para pessoas pretas e pardas, tornou-se prática recorrente entre grandes empresas do setor privado com o passar dos anos. Agora, a iniciativa parece ter se expandido também para o poder público.

Formada por 14 funcionários do banco, a iniciativa visa “estudar e propor medidas de fortalecimento das atividades do BNDES no que se refere às questões de equidade racial”.

Segundo dados da instituição, o BNDES conta com apenas 1,7% de pessoas pretas na instituição, contra 81,6% de pessoas brancas, considerando apenas os concursados na entidade. Pessoas pardas representam 12,9%, as amarelas 0,9% e os índigenas 0,3%.

Embora a diferença seja expressiva em um país que é composto majoritariamente por pessoas negras, segundo dados divulgados pelo IBGE, Marcos Mota, coordenador do grupo de trabalho do BNDES, explica que a ideia de ampliar a diversidade na empresa federal não foi trabalhada pelo governo passado e surgiu com o próprio Mercadante.

Marcos Mota, coordenador do Grupo de Trabalho de Empoderamento Negro para a Transformação da Economia Foto: Lucca Di Gioia/BNDES

“O assunto nunca foi tratado aqui antes. Na empresa, você vê pouquíssimos negros, dependendo da área você não tem nenhum ou tem um”, afirma Mota ao Estadão, acrescentando que a decisão não foi tomada para seguir a “moda corporativa” e que o grupo de trabalho é formado majoritariamente por pessoas negras.

Ele destaca que, embora a ação seja um avanço quanto a equidade racial na entidade, o processo não será tão rápido quanto o que é visto em empresas privadas, por exemplo.

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“Eu não tenho como mudar magicamente o BNDES. Não é uma decisão que você toma em um dia e magicamente eu tenho diversidade. Uma empresa pública está sujeita ao ordenamento jurídico. Não tenho espaço para fazer um trainee para negros e por isso temos que pensar em outras políticas. Nas empresas privadas basta a aprovação do conselho. Aqui, temos que passar por várias instâncias”, afirma.

Empresas privadas avançam na pauta

Embora o BNDES ainda esteja dando os seus primeiros passos em prol de uma agenda diversa em um programa anunciado há pouco mais de duas semanas, as empresas privadas registraram avanços significativos desde o anúncio feito pelo Magalu, que por muitos analistas de ESG foi considerado um “divisor de águas” ao lado do caso de George Floyd, que repercutiu mundialmente.

“Eu lembro quando saiu a Magalu, a sociedade ficou em polvorosa, mas eu vi como uma reparação histórica. Achei que foi inovador, eles foram pioneiros”, afirma Julia Minhaqui, hoje trainee na área de Estratégia Competitiva de Natura &Co América Latina, que lançou seu primeiro trainee exclusivo para negros, o CorageN, no final de 2022, repaginando o programa de seleção da empresa tendo como foco a formação de lideranças negras.

“A iniciativa foi reestruturada a partir das metas estabelecidas no Compromisso Antirracista que a Natura assumiu, que inclui um plano de ação para acelerar a diversidade, a inclusão e a representatividade de pessoas negras e indígenas”, diz a diretora de cultura e desenvolvimento organizacional de Natura &Co América Latina, Mariana Talarico.

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Na época, os critérios exigidos foram:

  • Se autodeclarar preto ou pardo (o processo de banca de heteroidentificação foi realizado por comitê da área de Diversidade, Equidade & Inclusão da Natura &Co);
  • Possuir graduação (bacharelado ou tecnólogo) completo até setembro de 2022;
  • Ter disponibilidade para trabalhar ou morar em São Paulo;
  • Ter espírito de liderança, inovação e intraempreendedorismo;
  • Experiências de vida transformadoras em projetos de impacto social ou ambiental para compartilhar.

Após firmar o compromisso de forma pública, a meta da empresa é alcançar 30% de colaboradores negros em posições gerenciais até 2030. Júlia, que é engenheira química por formação e natural de Recife, afirma que ver um programa voltado para ela fez muita diferença na sua autoestima, que acaba sendo afetada em casos de racismo nas empresas.

“Afeta a autoestima e a visualização do nosso próprio valor como profissional. Se eu passei 10 minutos pensando sobre aquilo, eu perdi um tempo que a pessoa branca não está perdendo. Isso já te coloca em um patamar de desigualdade. As pessoas brancas, até por certa ingenuidade, perguntam por que você não expõe, não fala. Se eu falar de tudo o que eu passo, eu só falaria disso”, afirma a trainee da Natura, destacando que o modus operandi dentro das companhias é o racismo velado.

Para ela, o programa é muito importante para a inclusão, mas mesmo com a inclusão ela destaca que as pessoas negras sentem uma pressão maior no ambiente de trabalho. “A gente tem a pressão de não decepcionar, de não errar. Quando a gente erra, o nosso erro não vai ser perdoado tão facilmente quanto o de uma pessoa branca. O nosso erro é a nossa cor”, afirma Júlia, destacando que por esse motivo não basta somente a criação do programa, mas também mecanismos que permitam o desenvolvimento desses profissionais. “É preciso abrir a porta, mas também permitir que essa pessoa fique”.

Júlia destaca que o maior diferencial de um trainee como o que participa foi, por exemplo, estar em uma reunião com pessoas iguais a ela. “Foi muito diferente a gente se ver no ambiente corporativo. Foi empoderador. A gente não está acostumado a se ver”, diz Júlia, afirmando que embora nunca tenha sofrido um caso de racismo mais violento, já sofreu micro agressões, que impactaram sua autoestima.

Julia Minhaqui, hoje trainee na área de Estratégia Competitiva de Natura &Co América Latina. Foto: Divulgação/Natura

“Tendo pessoas parecidas comigo, eu sei que se acontecer uma experiência negativa, a gente tem para quem contar. A gente não precisa engolir o choro e contar só em casa. Isso traz muita confiança, inclusive de autoestima. Traz mais segurança para que a gente desempenhe o nosso trabalho”, afirma.

Além da Natura, outro destaque neste sentido é a Mondelēz Brasil, que lançou o seu primeiro programa de liderança com foco na população negra em maio deste ano, o Mondelíderes.

Os selecionados passarão por um treinamento de 20 meses, além de um rodízio em vários setores da companhia. Betina Corbellini, vice-presidente de RH na Mondelez Brasil, destaca que uma das maiores preocupações da companhia ao longo do desenvolvimento do programa foi a sua estruturação, com o apoio do Instituto Identidades do Brasil (ID BR).

“Em 2020 fizemos o nosso primeiro senso racial para ganharmos a consciência de como era a empresa em termos étnicos. Tinhamos 45% de pretos e pardos, mas como na maioria das empresas, estavam nas fábricas e vendas e não nas lideranças”, explica Corbellini.

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Corbellini destaca que antes mesmo de criar programa afirmativo, toda a empresa passou por cursos e um letramento racial, para que houvesse um entendimento melhor sobre o assunto no Brasil. Assim, eles esperavam que o programa não só fosse criado da forma correta, evitando eventuais críticas, mas também evitando um desconforto na própria empresa.

“Hoje 56% dos nossos funcionários são pretos ou pardos. Após criar essa consciência, na liderança média passamos de 2% para 16%. Com o trainee, a nossa meta é alcançarmos 30% de negros em lideranças até 2030”, explica Corbellini, destacando que todas as metas da empresa são públicas e hoje parte dos critérios para a distribuição de bônus

Para ela, embora hoje a diversidade seja um critério de negócio para a empresa, a mudança interna dentro dos próprios funcionários foi o que mais impressionou a vice-presidente de RH. “Elas achavam que esse lugar não pertencia à elas. Hoje existe um movimento dessas pessoas acreditando. Isso deixa que nós tomemos decisões melhores, inclusive, para os nossos produtos, alcançando o público brasileiro, que é majoritariamente de pretos e pardos”.

Caso Magalu

Em setembro de 2020, o Magazine Luiza anunciou o primeiro trainee voltado exclusivamente para pessoas negras, se tornando um dos assuntos mais comentados do Brasil no Twitter naquele dia e gerando diversas discussões, com deputados e juízes questionando a constitucionalidade do programa, acusando a empresa de estar praticando “racismo reverso”.

A gerente de reputação e sustentabilidade do Magalu, Ana Luiza Herzog, foi uma das funcionárias que esteve diretamente envolvida no desenvolvimento do programa. A iniciativa tinha como intenção aumentar o número de pessoas negras em cargos de confiança, considerando que o quadro de funcionários da empresa era diverso, mas a liderança ainda era majoritariamente formada por pessoas brancas.

Herzog confessa que a empresa, de fato, esperava alguma polêmica, mas jamais na proporção que tomou. “Não queríamos desencadear um debate sobre racismo, mas até aquele momento você tinha estágios, não programas para níveis hierárquicos maiores”.

Ela explica que naquela época, a empresa foi surpreendida com críticas extremamente agressivas. “A gente foi alvo de três ondas de críticas. A primeira onda foi de racismo reverso, outra de questionar a constitucionalidade jurídica do programa e uma terceira acusando nos acusando de lacrar”.

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Para ela, embora a repercussão tenha sido estrondosa e surpreendido, eles ficaram tranquilos por terem feito um processo estruturado, tanto em relação aos moldes jurídicos, quanto à proposta do programa. “Em 2019 a gente sabia pouco do tema de raça. A gente se cercou de ongs, ativistas, promotores e o ministério público. A gente não queria fazer errado”.

Ana Luiza Herzog, gerente de reputação e sustentabilidade do Magazine Luiza Foto: Divulgação / Magazine Luiza

Três anos após a polêmica, eles destacam que todo o debate foi positivo, já que na época eles atraíram 22 mil inscrições, um número bem acima do esperado. “Antes a gente atraia candidatos negros, mas era muito pouco. A sensação que a gente tinha era de que essas pessoas não viam esses programas como para eles”, explica, destacando que a partir do momento que o programa foi feito de forma exclusiva, eles vislumbraram como um espaço que também era para eles.

Para analistas ouvidos pelo Estadão, o anúncio de um trainee, que tem como foco formar futuras lideranças, causou tanto choque porque, anteriormente, somente os programas de estágio, por exemplo, contavam com vagas afirmativas.

Este cenário, no entanto, não reduziu a desigualdade nas empresas, considerando que os cargos de liderança e tomada de decisão ainda eram majoritariamente ocupados por pessoas brancas. Isso acontecia no Magalu, por exemplo, que contava com um quadro de funcionários diverso quando decidiu criar o trainee, mas poucas pessoas em cargos de destaque, segundo a própria instituição.

Com o desenvolvimento de trainees focados em diversidade, toda a cadeia de trabalho teria sido impulsionada com a criação de vagas afirmativas para vários níveis hierárquicos. O volume dos processos seletivos de estágio direcionados para pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres e estudantes com mais de 40 anos cresceu 100% no ano passado, em relação a 2021, segundo a Companhia de Estágios.

Além disso, houve aumento no número de contratações. Em 2022, as contratações de pessoas pretas e pardas representaram 45% do volume total de aprovações contra 10% em 2018, segundo dados divulgados pela Cia de Talentos.