O hábito de recorrer ao dicionário deveria ser retomado. Aprendi com meu chefe, Sergio Bermudes. Um amante da língua portuguesa que, ao ditar suas petições, dá sempre uma pausa para se certificar do uso correto da expressão escolhida.
Lembrei dele por conta do abuso da palavra “prioridade”. O Houaiss a define assim: “Condição do que é o primeiro em tempo, ordem, dignidade; possibilidade legal de passar à frente dos outros; preferência, primazia; do que está em primeiro lugar em importância, urgência, necessidade, premência”.
Indiferente ao seu significado, Bolsonaro enviou 35 projetos prioritários ao Congresso! E ainda espera que se acredite que serão apreciados ainda este ano. É muita confiança no espírito reformista do Centrão. Só gente de pouca fé, como eu, para duvidar.
Enquanto isso, seguimos sem Orçamento e não há nenhuma política definida para substituir o auxílio, apesar de o assunto estar sendo discutido há meses. Sugestões não faltam; academia e Legislativo já apresentaram várias.
É um exemplo definitivo da incapacidade deste governo em escolher urgências e defender um projeto para o País. As PECs dos fundos, do pacto federativo, a emergencial estão na lista. De novo. Foram apresentadas em novembro de 2019 e abandonadas à própria sorte. Uma nova visita ao dicionário sugeriria que a PEC emergencial já deveria ter mudado de nome a esta altura.
No rol enviado estão no mesmo patamar a capitalização da Eletrobrás e excludente de ilicitude, homeschooling e teto remuneratório, marco legal das startups e reforma tributária. Prioridade mesmo, no singular, é inundar o País com armas.
O atrapalhado ministro da Saúde, em conjunto com o mal intencionado presidente da República, desprezou a ciência, a logística e a vida dos brasileiros. O general está sendo investigado pelo Ministério Público e questionado pelo Parlamento, mas não consegue esboçar uma justificativa que pare de pé para sua atuação pífia e tardia no combate ao coronavírus. Prefeitos desesperados pedem sua substituição por conta da falta de imunizantes, que obrigou várias cidades a suspenderem a vacinação. Além da enorme frustração, planos de recuperação da economia e de empregos foram revistos e adiados. Como brasileiro não perde uma piada, Pazuello já foi escolhido para comandar o golpe de 2022.
Não só Houaiss, mas Oswaldo Cruz e Sabin estão a se revirar no túmulo. Imagine como estaria este País sem o Butantan? Vacina que o iluminado Bolsonaro jurou não comprar. Mas ainda bem que a palavra dele não vale nada. Acuado, com medo de processos contra si, teve a desfaçatez de dizer que nunca receitou cloroquina, nem fez pouco do imunizante da Sinovac.
Dizem que ele dorme muito mal. O imagino em suas noites insone maldizendo a aliança de Doria com a China, seus dois maiores inimigos, suprindo a responsabilidade que deveria ser dele.
A prioridade deveria ser clara: vidas. Mas, para o Capitão Morte, é estimular a contaminação. Spray israelense é a nova moda. E com essas curas milagrosas, as vacinas perdem a primazia.
O desespero para conseguir uma dose é grande. Todo mundo quer montar seu bloco de prioritários. Os abre-alas foram os tribunais superiores e promotores pedindo passagem. Por maior que seja a ansiedade, nada justifica os fura-filas. Profissionais da saúde foram flagrados desrespeitando o cronograma oficial. Só me comoveu o secretário de Pires do Rio, que usou a dose para imunizar “o amor da sua vida”. Perdeu o cargo, mas não a vergonha na cara. Cenas de ar sendo injetado na população acima de 80 anos se multiplicam. Covardia. Muitos são incapazes de notar o truque. Tudo aponta para um mercado paralelo de doses.
Decidir a ordem da vacinação não foi tarefa fácil. Modelos de maximização do alcance da imunização foram ponderados com princípios éticos, dando preferência a grupos de risco, idosos e profissionais da saúde. Enquanto professores, entregadores e todos os que trabalham na cadeia de alimentação e transporte esperam sua vez. E sonhos de engravidar são adiados.
A crença em tratamento precoce e falta de planejamento obrigou a transferência de centenas de amazonenses para outras cidades. O risco de contaminação era sabido, mas para a sociedade não era mais possível ver brasileiros morrendo asfixiados. Para o governo sim, afinal, todo mundo vai morrer um dia, diz o presidente. Doze Estados já registram casos com nova variante.
As mortes se acumulam. A falta de esperança e a sensação de impotência frente a este governo estão me enlouquecendo. Os otimistas dizem que vai sobrar vacina no mundo. Só que o Brasil já não faz mais parte do mundo.
Para este ano não ser igual àquele que passou, o que podemos fazer? Impeachment não avança porque não há ambiente político, dizem. Estou com Karl Popper que alertou: “Se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância”.
Bolsonaro não pode seguir sem responder por seus crimes cotidianos. Não é questão jurídica ou política, é moral.
*ECONOMISTA E ADVOGADA
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