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Empreendedores da sociobioeconomia unem cuidado ambiental e criação de renda

Coletores de sementes e agricultores quilombolas usam potencial da floresta em favor do desenvolvimento sustentável

Por 33° Curso Estadão de Jornalismo

Separadas por cerca de 1.600 quilômetros e localizadas em Estados diferentes, as histórias da Rede Sementes do Xingu e da Cooperativa dos Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) estão unidas pelo mesmo fio condutor: a sociobioeconomia. Presente desde sempre nas cadeias produtivas das comunidades tradicionais, como ribeirinhos, povos indígenas e quilombolas, essa ideia de valor utiliza os potenciais da floresta em favor de um desenvolvimento econômico sustentável.

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“O manejo de uma alta diversidade de espécies em baixa escala com uma ampla possibilidade de uso é um valor no modo de vida de vários povos indígenas e comunidades tradicionais”, explica Jeferson Straatmann, engenheiro de produção que coordena as Cadeias de Valor do Instituto Socioambiental (ISA). “O que eles buscam não é o máximo lucro. É ter um bem viver, ter acesso a produtos que não conseguem produzir localmente.”

Coletora da Rede Sementes do Xingu, Roberizan Marques conta que a renda que conseguiu trabalhando para a organização sem fins lucrativos mudou sua vida. Com os ganhos, comprou casa própria e carro, colocou o filho em escola particular e ainda realizou um sonho: “Conheci o mar com o dinheiro da semente, foi lindo”, lembra Roberizan. “Muda a vida da gente, entendeu? É uma renda extra muito boa.”

Indígenas xavantes que colaboram com a Rede de Sementes do Xingu coletam e limpam buriti; a rede produz a chamada 'muvuca', mistura de sementes para projetos de restauração Foto: Rogério Assis/ISA/Divulgação

Na rede, as sementes são preparadas usando um método chamado de muvuca, técnica de plantio que consiste na mistura de diversas espécies e na dispersão delas pelo solo. Além de incentivar a coleta de mais de 200 tipos de sementes, a iniciativa reúne uma grande quantidade de pessoas, muitas vezes ligadas por laços familiares. Roberizan, por exemplo, foi convidada pelo marido a participar e atualmente leva Mateus, o único filho do casal, para ajudar nas coletas.

Outro caso é o de Milene Alves, que foi incentivada pela mãe e pelo padrasto a ingressar na rede e depois decidiu cursar Biologia. “Hoje eu me vejo dando formação de identificação de plantas para coletores. É o que eu quero repassar para meus filhos”, conta Milene, que atualmente faz parte do Comitê Diretivo da Sementes do Xingu.

A partir de Mato Grosso, a rede vende as sementes coletadas para o Brasil inteiro, incluindo grandes empresas que precisam recuperar áreas desmatadas. Em 16 anos de atividades, a iniciativa já propiciou o reflorestamento de mais de 8 mil hectares em regiões antes degradadas nas bacias dos Rios Xingu, Araguaia e Teles Pires. Também garantiu repasses diretos de R$ 5,3 milhões aos coletores, segundo o coordenador administrativo da Sementes do Xingu, Rodrigo Mota.

Economia do cuidado

Para os quilombolas que trabalham com agricultura sustentável no Vale do Ribeira, interior de São Paulo, a atividade vai muito além do plantio e da colheita: há um ritual de respeito ao solo e à ancestralidade da ocupação que deve ser passado adiante. O plantio é feito de acordo com um método conhecido como roça-de-toco ou coivara. Após a colheita, a terra descansa por quatro a cinco anos até os produtores voltarem a trabalhar naquela área.

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É uma economia do cuidado, que regenera, que trabalha de uma forma em que a natureza está se transformando em natureza

Jeferson Straatmann, coordenador de Cadeias de Valor do Instituto Socioambiental

A transmissão dessas práticas sustentáveis para as novas gerações, no entanto, tem sido um desafio para os agricultores quilombolas. Morador do quilombo São Pedro, em Eldorado, a 250 quilômetros de São Paulo, o produtor Nodir Dias Daguia, de 43 anos, percebe que os tempos mudaram ao tentar compartilhar com o filho Nadson Renan, de 16, os conhecimentos que aprendeu com os avós sobre o tempo de plantar, de colher e de deixar a terra descansar. “Hoje, os mais jovens saem para estudar, aprendem uma coisa nova. Então, muitas vezes já esqueceram daquelas palavras que a gente falou do modo de vida dos nossos antepassados lá atrás”, diz o produtor.

Criada em 2012, a Cooperquivale tem hoje 250 agricultores de 17 comunidades quilombolas nos municípios de Eldorado, Jacupiranga, Tapiraí e Itaóca. Boa parte utiliza roça-de-coivara para plantar arroz, milho, feijão, mandioca, batata doce e inhame, de acordo com Rosane Almeida, produtora que integra o conselho fiscal da cooperativa. Ela conta que antes de se unirem os quilombolas plantavam apenas para consumo próprio. “O que consumia, consumia. O que não consumia, dava para os outros, trocava ou perdia na roça. Era uma situação difícil”, diz Rosane.

Hoje, a produção é entregue para a Cooperquivale, que está credenciada no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, que compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e distribui gratuitamente para a população em situação de insegurança alimentar. “A minha vida mudou, porque passei a ter para onde vender os produtos e ter minha renda própria”, comemora a agricultora.

Entraves

Rosane e Daguia apontam o licenciamento das roças tradicionais quilombolas como a principal dificuldade que enfrentam para manter o sistema de produção de seus ancestrais. “Nossos antepassados desmatavam um ou dois alqueires e ali eles plantavam o que queriam. Hoje, a gente não pode fazer isso”, reclama o produtor. Segundo Daguia, as licenças não permitem o plantio da mesma cultura em áreas contínuas, o que dificulta o trabalho do produtor. “Quando há liberação, é um pedaço mínimo que muitas vezes não dá para quem está acostumado a plantar uma quantidade grande. Aí tem que ser picado, uma quantidade aqui, outra ali, outra lá.”

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De acordo com a Fundação Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), o licenciamento baseia-se em uma resolução de outubro de 2022, cujo texto foi elaborado em conjunto com as comunidades, representadas por um grupo de trabalho que acompanhou a definição de critérios e procedimentos para exploração sustentável de espécies nativas do Brasil no Estado de São Paulo. Por e-mail, o Itesp informou que anteriormente a área contínua a ser ocupada com roça tradicional era de até um hectare, mas que atualmente podem atingir até um alqueire e uma quarta de terra, ou seja, 3,025 hectares por posse ou família.

A legislação impacta principalmente culturas como a da banana e do palmito pupunha, segundo o produtor Nodir Daguia. Atualmente, a produção de banana da Cooperquivale integra o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e é destinada à merenda escolar da rede municipal de São Paulo. Além disso, a cooperativa integra o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal. O contrato prevê uma entrega semanal na cidade de Jandira (SP), também no Vale do Ribeira.

Daguia diz que entende a necessidade de proteção ambiental e afirma que nenhuma comunidade quilombola quer trabalhar fora da lei. “Queremos que o governo entenda que, se a nossa Mata Atlântica está em pé, foram nossos antepassados que a seguraram”, diz o produtor. (Reportagem de Camila Pessoa, Catarina Carvalho, Daniel Brito, Gabriel Batistella, Gabriela Pereira, João Coelho e Rafaela Ferreira)

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