‘É ultrajante que todos os países ainda deem subsídios ao petróleo’, diz executiva do setor aéreo

Vice-presidente da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) afirma que descarbonização do setor está atrasada; entidade vem ao Brasil para a COP-30 em busca de vendedores de créditos de carbono

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Foto do author Luciana Dyniewicz
Foto: Natalia Mroz
Entrevista comMarie Owens ThomsenVice-presidente de sustentabilidade da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo)

O setor aéreo está atrasado na descarbonização porque não há combustível sustentável disponível no mercado, e os governos precisam fazer sua parte para que o transporte seja limpo, isto é, parar de dar subsídios à indústria de combustíveis fósseis, diz a vice-presidente de sustentabilidade da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo), Marie Owens Thomsen.

“É ultrajante que ainda damos subsídios ao petróleo. Todos os países, provavelmente sem exceção, dão subsídios diretamente às empresas de petróleo para melhorar seus lucros. E governos evitam dar subsídios equivalentes aos produtores de energia limpa. Isso não faz sentido”, afirma a executiva.

Thomsen reconhece que o fim dos subsídios ao petróleo está mais longe de acontecer com Donald Trump na Casa Branca. Diz também que o passageiro pagará pela descarbonização do setor aéreo. “Na economia global, o consumidor sempre paga por tudo, seja por meio do consumo, dos impostos ou de ambos.”

A Iata participará da COP-30 – a Conferência da ONU sobre mudanças climáticas, que será realizada em novembro no Brasil – com a intenção de conversar com possíveis vendedores de créditos de carbono, dado que a indústria terá de adquiri-los para compensar suas emissões.

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Confira, a seguir, trechos da entrevista:

Como avalia as medidas implementadas até agora para reduzir as emissões da aviação?

Insuficientes. Os projetos e a produção de combustível de aviação sustentável (SAF, na sigla em inglês) estão crescendo. Acreditamos que em 2024 possa ter chegado a um milhão de toneladas. Isso é o dobro de 2023, mas também um terço abaixo do que esperávamos. Então, está indo na direção certa, mas não rápido o suficiente, e os governos não estão dando atenção suficiente a isso nem oferecendo o suporte necessário.

O que os governos precisam fazer? Não há também uma responsabilidade das empresas?

O trabalho das companhias aéreas é transportar pessoas e bens. As companhias aéreas não produzem combustível nem fabricam aviões, e basicamente todas as coisas necessárias para voar sem emitir tanto CO₂ são soluções que requerem ajuda governamental. As companhias aéreas têm margens de lucro muito baixas. Estamos prevendo que a margem de lucro líquido global no nosso setor será de 3,6% em 2025. As empresas de petróleo e gás têm margens de lucro líquido na casa de 20%. Elas têm os recursos para trazer soluções para o mercado; nós não temos. Elas têm a expertise para trazer essas soluções; nós não temos. Então vamos implementar políticas que façam com que elas façam o que deveriam fazer ou políticas que ajudem novos participantes a entrar no mercado.

Thomsen: 'Precisamos de SAF e de créditos de carbono, mas não temos nenhum deles em quantidades significativas. Certamente olharemos para o Brasil em busca de ajuda para ambos' Foto: IATA/Divulgação

Na prática, o que os governos deveriam fazer?

O mundo declarou que quer reduzir o uso de combustíveis fósseis para limitar o aquecimento global. Essa é a tarefa estabelecida no Acordo de Paris. Os 195 países disseram que é o que querem. Portanto, o inimigo, por assim dizer, é a fonte de energia, não a indústria. Mas todas as indústrias usam combustíveis fósseis. É ultrajante que ainda damos subsídios ao petróleo. Todos os países, provavelmente sem exceção, dão subsídios diretamente às empresas de petróleo para melhorar seus lucros. E governos evitam dar subsídios equivalentes aos produtores de energia limpa. Isso não faz sentido. Os produtores de energia limpa estão, metaforicamente, subindo uma montanha. Temos uma espécie de Monte Everest à nossa frente, em termos dos desafios que precisamos superar na produção de energia limpa, em comparação com a situação do setor de petróleo e gás. Essa é a primeira e mais importante coisa que precisa ser corrigida.

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Diante desse cenário, o setor conseguirá atingir as metas que estabeleceu? Você parece pessimista.

Eu sou pessimista em relação ao desempenho atual, mas sou otimista em termos de viabilidade. É absolutamente viável atingir as metas. Temos as tecnologias. Sabemos como produzir esses combustíveis. O montante de dinheiro necessário para fazer isso acontecer não é maior do que os valores investidos em energias eólicas e solares. Então, não é algo absurdo. É apenas essa espécie de recusa da maioria dos políticos e líderes globais em realocar capital. É como se precisasse fazer uma inversão de marcha, na qual o dinheiro em apoio à produção de petróleo e gás precisa diminuir, e o dinheiro em apoio à energia limpa e ao combustível sustentável de aviação precisa aumentar. Agora, o dinheiro privado segue o dinheiro público. Se você observar o desempenho dos índices de ações, perceberá isso. Desde 2021, o desempenho das ações de petróleo, em termos de mercado, aumentou mais de 60%, enquanto o das ações de energia limpa diminuiu 60%. Isso é o setor privado nos dizendo que entende perfeitamente onde o setor público está investindo o dinheiro, que é no petróleo. A cada ano, continuamos a bombear mais petróleo do que nunca. Nada disso é útil para a transição energética.

Acredita que o novo governo de Donald Trump deve dificultar esse aumento da produção de biocombustíveis?

O novo governo tem um compromisso menor com o combate às mudanças climáticas. Agora, como eles responderão a indústrias específicas e a necessidades específicas dependerá de uma definição de prioridades mais, digamos, mercantilista. Se conseguirmos convencer o novo governo de que os EUA têm um papel realmente importante a desempenhar em termos de produção de SAF e, potencialmente, de exportação desse combustível, acredito que políticas positivas e de apoio possam ser mantidas. Mas, com certeza, estamos um pouco nervosos com a possibilidade de que as políticas de apoio do governo anterior sejam eliminadas. Ainda assim, ousamos esperar que isso não aconteça, porque existem outros interesses do novo governo que poderiam argumentar a favor da manutenção de algumas dessas políticas de apoio às energias renováveis e ao SAF. Mas, quando falamos sobre o absurdo que é que todos ainda estejam despejando toneladas de dinheiro nas empresas petrolíferas, acho que qualquer esperança de mudança nesse aspecto sob o novo governo seria ingênuo. É claro que o impulso mais forte será ajudar as empresas de petróleo e gás o máximo possível. E qualquer apoio que as empresas de energia renovável recebam permanecerá relativamente pequeno.

No Brasil, fala-se muito que o País tem potencial para fornecer soluções e produzir SAF, mas, por ora, temos poucos projetos se materializando. Como avalia o desempenho do País na área?

Acho que o Brasil tem todos os ingredientes necessários: expertise na produção de bioenergia e biocombustíveis e, claro, matéria-prima. O País também tem um vasto potencial para desenvolver projetos de crédito de carbono. Isso é muito interessante para o nosso setor, porque temos obrigações de redução de emissões impostas por nossa agência da ONU para aviação civil (Organização da Aviação Civil Internacional, ou Icao, na sigla em inglês). Eles exigem que as companhias aéreas compensem suas emissões, e estamos desesperadamente precisando de créditos. Então, precisamos de SAF e de créditos de carbono, mas não temos nenhum deles em quantidades significativas. Certamente olharemos para o Brasil em busca de ajuda para ambos.

O consumidor terá de arcar com o custo da descarbonização do setor?

Sim. Na economia global, o consumidor sempre paga por tudo, seja por meio do consumo, dos impostos ou de ambos. O ônus recai sobre o consumidor. Essa é a regra número um. Para qualquer empresa, a prioridade é cobrir seus custos. Se elas não cobrirem seus custos, vão falir. Agora, como exatamente isso será articulado neste caso depende de muitos fatores. Historicamente, o que as companhias aéreas fazem ao enfrentar custos mais altos é absorver uma parte deles em suas margens de lucro e repassar outra parte para os consumidores. Ambas as estratégias são geralmente utilizadas. Mas, novamente, precisamos lembrar que as margens de lucro das companhias aéreas são muito pequenas. Atualmente, prevemos uma margem de lucro líquido de 3,6% para 2025 para o setor como um todo. É uma margem de lucro baixa, que não é muito atraente para investidores em geral. Esses 3,6% equivalem a US$ 7 por passageiro. Nosso lucro é cerca de um hambúrguer por pessoa. Não é muito. Se queremos uma indústria aérea, ela precisa obter algum lucro. Caso contrário, não teremos companhias aéreas.

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Como tem sido a participação da Iata nas COPs?

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O transporte aéreo internacional não se enquadra na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) ou nas COPs. Isso ocorre porque temos uma agência especializada da ONU que cuida de nós, a Icao. Há alguns anos, a Icao disse para as aéreas: ‘Vocês devem compensar as emissões’. Nós dissemos: ‘Tudo bem, faremos isso’. Mas, de alguma forma, isso não foi devidamente transmitido às pessoas da UNFCCC. Assim, as companhias aéreas têm a obrigação de compensar, comprar créditos, mas os países não têm a obrigação de torná-los disponíveis. Então, fomos a Baku, na COP do ano passado, dizer: ‘Oi, precisamos desses créditos. Por favor, disponibilizem para nossa indústria’. Porque agora estamos competindo para ver quem pode usar esses créditos que serão estabelecidos sob as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Os países precisam desses créditos para si mesmos ou, se tiverem excedentes, podem disponibilizá-los para outros países, para nossa indústria ou para outras indústrias.

E vocês devem voltar a fazer isso na COP-30?

Com certeza, estaremos aí tentando falar sobre nossas necessidades. Continuaremos defendendo que devemos focar na fonte de energia, e não na atividade industrial. E, se conseguirmos resolver isso para nossa indústria, avançaremos na solução para muitas outras indústrias. Além disso, falaremos sobre nosso impacto no desenvolvimento econômico. Pegue a África, por exemplo. Apesar de ter a maior área de livre comércio do mundo, ela só realiza de 10% a 15% do comércio internamente, enquanto a União Europeia realiza 75%. Isso é ultrajante e está muito relacionado à falta de conectividade fundamental, seja aérea, terrestre ou ferroviária. Não estou dizendo que todos devem ter transporte aéreo, mas ele é necessário. Quando há conectividade, há um impacto multiplicador no desenvolvimento econômico: novas indústrias surgem, novos acontecimentos se desdobram, e os países começam a crescer em um ritmo diferente. Energia e transporte são os dois principais ingredientes do desenvolvimento econômico. Então, continuaremos falando sobre isso na COP, porque há algumas tendências a pensar que, talvez, devêssemos voar menos e, assim, reduzir as emissões de CO₂. Obviamente, estamos argumentando que isso seria um grande erro. Esse é, em linhas gerais, o nosso plano.