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Economia e políticas públicas

Opinião|O combate aos penduricalhos

Grita contra auxílio-moradia (mesmo para quem tem casa própria onde trabalha) e outros benefícios de juízes é um sinal positivo de evolução da democracia brasileira.

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Atualização:

O atual clamor contra o auxílio-moradia de juízes que têm residência própria nas cidades em que trabalham é extremamente salutar em termos da evolução da democracia brasileira.

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Algumas pessoas se preocupam - e não são só magistrados argumentando em causa própria - que essa onda de críticas ao Judiciário seja uma cortina de fumaça para tirar a legitimidade das condenações de altas figuras do mundo da política e dos negócios.

Mas é um erro pensar assim. Fora dos guetos sectários que infectam o debate público com radicalismo e intolerância, a maior parte das pessoas é capaz de discernir perfeitamente que as críticas aos privilégios do Judiciário não tiram o elevado mérito de uma legião de juízes corajosos e bem preparados, que conseguiu finalmente fazer valer no Brasil a lei para os poderosos.

O cidadão comum aplaude o juiz Sérgio Moro por sua condução correta e competente dos processos de Lula, de outros políticos e de diversos empresários, ao mesmo tempo em que lamenta que ele recentemente tenha justificado o auxílio-moradia como uma "compensação" pelo não reajuste dos salários dos juízes.

Na verdade, a sociedade parece estar tomando consciência que o Estado não pode ser uma "casa da mãe joana". Nem por meio do saque ilegal de recursos públicos pela corrupção, nem pelo avanço abusivo, legal, mas antiético, das corporações sobre o Erário. No fundo, o combate à corrupção e ao corporativismo conduzem ao mesmo fim: a construção de um Estado verdadeiramente forte, isto é, solvente, ágil e eficiente em utilizar de forma adequada cada centavo de dinheiro público.

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Uma ressalva importante tem que ser feita no argumento acima. Por mais que se possa criticar as vantagens legais obtidas pelas corporações, não se pode colocá-las no mesmo plano moral da corrupção: crime é crime. Por outro lado, é fato que o problema fiscal se concentra muito mais nas despesas com um sistema excessivamente generoso de remuneração de ativos e inativos de diversas categorias de funcionalismo nos três Poderes - assim como os subsídios distribuídos a rodo para segmentos empresariais "amigos do rei" - do que com as perdas pela corrupção.

A argumentação de Moro e de outros juízes de que os penduricalhos da folha salarial do Judiciário são uma compensação pela falta de reajustes é emblemática das piores distorções do Estado brasileiro.

Para começar, há que se perguntar por que o dinheiro público deve bancar a compensação para os juízes, uma categoria que tem um padrão de vida estável e garantido, na fatia do 1% mais rico em termos globais, e não para trabalhadores informais, empregados do setor privado demitidos em função da crise e todos aqueles brasileiros que, além de também não terem "reajuste", são submetidos muitas vezes à perda total da renda de uma hora para outra.

Adicionalmente, os penduricalhos correspondem a uma das piores manifestações do "jeitinho brasileiro".Em nível direto, são subterfúgios para contornar o teto salarial do setor público, algo que deveria envergonhar a categoria dos juízes, em teoria os principais guardiões da lei e do espírito da lei.

Em outro nível menos compreendido, entretanto, é possível que os penduricalhos sejam ainda mais nocivos. Como se sabe, um dos embates mais difíceis no amadurecimento de uma democracia é aquele que se dá cotidianamente, em todos os níveis da sociedade, entre o interesse difuso e os interesses de grupos específicos. A capacidade de o interesse difuso se impor ao interesse especial é quase um termômetro da qualidade de uma democracia.

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Para que o direito difuso possa prevalecer, contudo, é fundamental que haja transparência no funcionamento das instituições. Em termos concretos, só é possível pressionar o Judiciário para que tenha uma política de remuneração mais justa e compatível com a realidade de um país de renda média como o Brasil se for possível conhecer qual é esta política e quanto ganham os juízes.

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Exatamente para dar opacidade e travar esse debate, são construídos sistemas complexos e barrocos de remuneração, com um emaranhado quase incompreensível de vantagens e acréscimos na folha. Como é difícil entender o sistema, torna-se também difícil criticá-lo e mudá-lo. Fora que os próprios juízes usam essa complexidade para tomar decisões corporativas em causa própria sempre com argumentos que têm como pano de fundo a ideia de que "os críticos não estão entendendo do que se trata". E não estão entendendo mesmo, pois o sistema foi feito para ser entendido apenas por poucos privilegiados.

O problema, é claro, não é só dos juízes. Ele estende-se a procuradores, ao Legislativo e a várias categorias do Judiciário.

Assim, a ira popular contra o auxílio-moradia dos juízes é um bom sintoma, mas é apenas o começo de uma longa e difícil queda-de-braço entre o interesse difuso e as corporações. É preciso que a sociedade entenda, antes de mais nada, que o auxílio-moradia é apenas a ponta simbólica de um iceberg gigantesco que pesa sobre os ombros do Estado brasileiro. (fernando.dantas@estadao.com)

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

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Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 9/2/18, sexta-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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