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Conselho sem diversidade é constrangedor para empresas, diz executiva que forma líderes negras

Cofundadora do Conselheira 101, Jandaraci Araujo afirma que argumento do mercado de que não há mulheres negras preparadas ou com uma carreira corporativa sólida para ocupar posições nos conselhos não se sustenta

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Por Shagaly Ferreira
Foto: Divulgação
Entrevista comJandaraci AraujoCofundadora do Instituto Conselheira 101

Ampliar o número de mulheres negras nos conselhos das empresas brasileiras. Essa é a meta que norteia as ações do Instituto Conselheira 101, desde sua fundação em 2020. Idealizada pela executiva Jandaraci Araujo com um coletivo de mais oito mulheres C-level (que ocupam os cargos mais altos de uma companhia), a iniciativa sem fins lucrativos tem se dedicado a tornar mais diversos esses grupos corporativos decisórios no País.

Para isso, a instituição tem mapeado e preparado profissionais de nível elevado de senioridade para disputar postos como conselheiras, frente a um panorama considerado ainda pouco inclusivo.

O cenário é desafiador, segundo a executiva. Como exemplo, dados do relatório Liderança Empresarial: Um Estudo sobre CEOs e Conselhos de Administração (2023), da consultoria Vila Nova Partners, apontam que, entre conselheiros de administração das empresas listadas no Ibovespa, menos de 20% são do gênero feminino. Quanto à representatividade racial, a disparidade é ainda mais drástica. Apenas 3% das pessoas integrantes desses conselhos se autodeclaram pretas ou pardas.

Quando cofundou o Conselheira 101, o quadro não era mais favorável do que hoje, diz Araujo. A executiva já acumulava experiência de duas décadas em cargos de liderança, passando por companhias como Polishop e Grupo Pão de Açúcar (GPA), e havia conseguido firmar uma rede de contatos com outras líderes negras. Porém, quando se tornou conselheira, não via essas profissionais nos colegiados das empresas.

Na época, a justificativa do mercado para a ausência, segundo ela, era a mesma que escuta até hoje: não há executivas negras com os requisitos necessários para atuar em um conselho. No entanto, o alto nível de experiência de suas pares demonstrava o contrário. “O argumento que nós recebemos é que não havia mulheres negras preparadas ou com uma carreira corporativa sólida para ocupar posições nos conselhos. É uma grande falácia”, afirma. “De cara, encontramos umas 80 mulheres (com o perfil exigido pelos colegiados).

A executiva Jandaraci Araujo é cofundadora do Conselheira 101, programa que estimula a inserção de mulheres negras em conselhos administrativos. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O episódio reforçou a percepção de Araujo de que a falta de líderes negras nos conselhos se dá não por um despreparo delas, mas por uma invisibilidade de suas carreiras. Na última turma do Conselheira 101, por exemplo, o programa de formação com capacidade para 35 mulheres recebeu um número de inscrições 11 vezes maior. É a prova de que são centenas as líderes negras que têm mais de 15 anos de experiência profissional, cinco deles em posição de liderança sênior, têm pós-graduação ou MBA e outros títulos que as tornam aptas para os conselhos no Brasil, diz a executiva.

“Enquanto muita gente fala que precisa abaixar a régua ou flexibilizar para poder incluir uma pessoa negra, nós saímos desse lugar da flexibilização e fomos para outro patamar”, afirma Araujo. “Acabou o discurso de que não tem (mulheres negras preparadas para os conselhos). O constrangimento de não ter nenhuma diversidade, e aqui eu falo de gênero e raça, fica para a empresa.”

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Abaixo, os principais trechos da entrevista:

O Conselheira 101 tem como foco as executivas negras desde quando foi idealizado?

Nós já começamos com foco em mulheres negras. O argumento que nós recebemos é que não havia mulheres negras preparadas ou com uma carreira corporativa sólida para ocupar posições nos conselhos. É uma grande falácia. O que a gente tinha era uma invisibilização dessas mulheres, e foi o que a gente comprovou logo no primeiro momento. Quando a gente olha as skills (habilidades): experiência em posição de liderança, formação acadêmica mínima, várias mulheres negras têm.

Todas as ações que existiam até então tinham um foco genérico em gênero, como se a gente não tivesse a interseccionalidade (de raça e gênero), que é muito característica do Brasil. Com toda a sua importância e toda a sua relevância, estavam replicando modelos de fora e focando, em sua maioria esmagadora, em mulheres não negras.

Em um país de dimensão continental, onde mulheres negras representam mais de um quarto da população brasileira, como dizer que não há mulheres preparadas para os conselhos? É como se toda a população negra só tivesse começado a se formar ou a ocupar posições a partir da Lei de Cotas (nº 12.711/2012). Então, a gente está falando de um processo de invisibilização, e esse incômodo meu e de Lisiane Lemos (também cofundadora do Conselheira 101) fez essa convocação para outras mulheres se juntarem para o programa.

De onde vem o argumento de que não há mulheres negras preparadas para os conselhos?

O mercado fala isso. Em qualquer programa de alta liderança, você ouve: “Eu nunca encontro uma pessoa preparada”. Essa é a desculpa do mercado, sempre foi.

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E vocês precisaram fazer algum tipo de mapeamento para encontrar essas executivas?

Sim. O primeiro mapeamento foi na nossa rede de contatos. De cara, nós encontramos umas 80 mulheres, em uma pesquisa básica, sem abrir inscrições. Entendido qual era o perfil de uma mulher que poderia se preparar para estar em um conselho, nós fomos em busca dele olhando para mulheres negras.

Nós nos juntamos, conversamos com o IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) e dissemos que falaríamos de governança corporativa para as mulheres negras, porque isso está tão distante da nossa realidade que muitas delas sequer se veem nessa posição, mesmo estando prontas.

Estruturamos uma formação online no auge da pandemia e saímos contatando todas elas, falando que estávamos fazendo um programa preparatório para poder dar visibilidade a mulheres negras que estão prontas ou têm skills suficientes para ocupar posições em conselhos de administração, consultivo ou deliberativo. Explicamos a metodologia, elas disseram sim, e tivemos apoio de palestrantes do IBGC, WCD (Women Corporate Directors) e KPMG.

A primeira turma teve 20 mulheres. Hoje, a gente tem turmas com 35 pessoas no máximo para manter a qualidade de conexão e networking.

São cinco meses intensos de preparação. Como vocês acompanham a trajetória delas após o programa?

Elas participam de um ecossistema de governança corporativa e alta liderança. E esses são os grandes ganhos, porque obviamente a gente sabe que no Brasil há o processo seletivo tradicional, por meio de headhunters, mas essas posições de conselho ainda são muito ocupadas via networking, pois são posições realmente estratégicas.

Depois, elas continuam essa jornada de desenvolvimento. Muitas vão fazer outros cursos e buscar certificações. De acordo com nossa última atualização, 49% delas já conseguiram ingressar em conselhos.

Nós, inclusive, sempre que temos oportunidade recomendamos nomes de acordo com as suas especificidade técnicas. Temos um trabalho intenso de indicação, mas a gente não coloca ninguém em conselho, é importante enfatizar. Nós recomendamos, distribuímos currículos e acompanhamos a evolução delas.

Esse porcentual de 49% de mentoras nos conselhos está abaixo ou acima da meta de vocês?

Para ser bem franca, o que a gente imaginou é que, se 10% delas conseguissem entrar nos conselhos, já seria muita coisa. Quando começamos a falar com headhunters, entendemos que havia uma demanda reprimida. E, óbvio, o currículo delas é surpreendente. Estamos falando de pessoas que têm mestrado, que têm doutorado, não é um currículo qualquer, e esse é o ponto. Eu costumo dizer que o algoritmo nunca trabalhou a nosso favor, porque são pessoas que têm uma formação sólida, inclusive fora do Brasil.

Um grande marco do programa foi a formação internacional delas na Universidade da Califórnia (UCLA), ocorrida em março deste ano. Foram 30 mulheres negras e indígenas sentadas em uma das maiores universidades dos Estados Unidos, em um curso totalmente em inglês. A gente resolveu não ficar mais disputando. Ou seja, quando elas vão para a base de uma instituição americana como alumni em um curso de governança, elas estão aptas para ocupar conselhos de empresas globais.

Turma de executivas do Conselheira 101 em universidade nos Estados Unidos. Foto: Conselheira 101 Foto: Divulgação

A gente está falando de sair de um outro lugar. Enquanto muita gente fala que precisa abaixar a régua ou flexibilizar para poder incluir uma pessoa negra, a gente saiu nesse lugar da flexibilização e fomos para outro patamar.

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De um modo geral, daquele primeiro momento de incômodo em 2020 para cá, a sra. percebeu que houve avanços em relação à diversidade dentro dos conselhos?

Eu visualizo assim: acabou-se o discurso de que não tem (mulheres negras preparadas para os conselhos). Pelo menos isso a gente quebrou. A gente vê um rastro de avanço, mas nas empresas de capital aberto praticamente não tem (conselheiras negras), continua o mesmo padrão.

O que a gente percebe, com esse pequeno grupo (do Conselheira 101), é que as possibilidades se ampliam a partir do momento que a qualificação e a experiência deixam de ser um argumento para não inseri-las nesse lugar.

É muito importante ressaltar, e não estou falando contra a Lei de Cotas, mas estamos falando de pessoas que se formaram antes da existência da Lei de Cotas, porque a percepção que a gente tem é que quem é diverso, negro ou indígena, só passou a existir e a ser considerado como um profissional depois disso. Eu tenho 51 anos e não me formei há dez, 12 anos. Tenho quase 30 anos de carreira. Há outros homens e mulheres negros também nessa condição.

É importante falar que a gente tira o primeiro véu, mas o teto continua de vidro. Vão achar “n” argumentações para não inserir essa pessoa. O sistema de exclusão vai criando mecanismos, falas e discursos para desqualificar a trajetória profissional.

O Conselheira 101 também tem alguma iniciativa B2B para diminuir as barreiras entre as empresas e as potenciais conselheiras?

Hoje, não. O que fazemos é falar quando temos oportunidade e somos convidadas para tal, mas não fazemos um trabalho intensivo junto às empresas. Nós não somos uma consultoria para a questão da diversidade. Então, o nosso olhar está do outro lado. Esse constrangimento de não ter nenhuma diversidade, e aqui eu falo de gênero e raça, fica para a empresa. O que pode colaborar para que isso mude é, por exemplo, a regulamentação da CVM, o Índice Diversa da B3...

O que entendemos é que estamos prontas, nos preparamos, existimos. Mas o olhar sobre a importância de ter essa diversidade de background fica com a empresa. É uma escolha da empresa, e toda escolha traz ônus e bônus. E que ela lide com seus consumidores, com seus investidores, mas não use mais o argumento de que não existem mulheres negras preparadas para tal posição.

A empresa que deixa de ter diversidade tem perdas de que tipo?

É uma relação que quem tem de cobrar são os investidores. Quem tem de cobrar é quem consome daquela empresa. Por exemplo, tem empresa que não tem nenhuma mulher no comando…

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Mas, além desse prejuízo, o que é que a sra. acredita que a falta de diversidade acarreta?

Eu não acredito em prejuízo. O que eu falo é que tem uma questão reputacional, o “walking the talk (termo em inglês para “agir conforme o que prega”). Não dá para sair falando de relatório de sustentabilidade e não ter essa diversidade.

E há perdas na questão de inovação. Não se inova, e isso é comprovado cientificamente, se a empresa tem todo mundo com o mesmo padrão de comportamento. Não se consegue romper barreiras de inovação no mundo que exijam inovações rápidas, alta resiliência e adaptabilidade (sem a diversidade).

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