Hora de gastar

Enfrentamos hoje a maior ameaça de um holocausto médico dos tempos recentes. Só uma mente primitiva pode ser infectada com a ideia delirante de que não se trata de uma doença grave. O isolamento social é a medida preconizada por quem detém o conhecimento científico, algo também rejeitado pelos terraplanistas da saúde púbica. O argumento é de que a economia não pode parar. Decerto, a falência da economia também implica graves problemas. O desemprego também mata?

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Por Luís Eduardo Assis

Estudo publicado na revista The Lancet em novembro de 2019 (Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditure on adult mortality, T. Hone e outros) mostra que entre 2012 e 2017 o aumento do desemprego no Brasil pode explicar 31,4 mil mortes adicionais, concentradas entre homens pretos e pardos.

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À primeira vista, essa conclusão pode estimular os parvos ao exercício de uma contabilidade macabra. Se o desemprego pode matar mais que o isolamento social, não tem sentido parar a economia, talquei? O raciocínio é tolo. Trata-se de um falso dilema. O mesmo estudo mostra que não foi detectada nenhuma correlação entre aumento do desemprego e elevação da mortalidade nos municípios com maior gasto em saúde pública. O desemprego não mata; o que mata é o descaso com a saúde pública, agravado nos períodos de recessão.

O mundo inteiro já sabe: o impacto sobre a economia pode ser mitigado por meio de uma maciça injeção de recursos públicos, não só no sistema de saúde, como também na ajuda direta a empresas e trabalhadores. Sim, uma política fiscal expansionista. Juros baixos e crédito subsidiado têm efeito reduzido. Nosso problema não está em escolher entre “saúde” e “economia”. Nosso problema está em convencer a equipe econômica de que, se não houver logo uma política fiscal ativa, teremos de conviver não só com as mortes provocadas pelo novo coronavírus, como também com o colapso da economia.

Parece simples fazer o que todos os países estão fazendo, mas a barreira ideológica é colossal. As medidas são arrancadas a fórceps, após enfrentar a teimosia dogmática de quem tem profunda fé de que todo gasto público é nefasto.

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De onde virá o dinheiro? O debate recente sobre a reforma da Previdência vendeu a tese rudimentar de que o orçamento público é igual ao de uma família. Não é. Sem contar juros, o governo central gastou quase R$ 90 bilhões a mais do que arrecadou no ano passado. Temos déficit primário desde 2013. Se considerarmos juros, não há registro de ano em que a despesa tenha sido menor que a receita. O que preenche a diferença é a emissão de dívida, a criação de moeda – algo que as famílias não podem fazer.

É preciso dar proteção aos 38 milhões de trabalhadores informais. Os R$ 200,00 mensais propostos pelo ministro Paulo Guedes, com limite de R$ 5 bilhões por mês, representam apenas 8% do total de rendimento dessas pessoas. É quase nada. Os trabalhadores do mercado formal podem ser amparados pela suspensão temporária de encargos sobre a folha de pagamentos, benefício que pode ser condicionado à manutenção do emprego. O impacto fiscal será temporário se as medidas de estímulo tiverem data para acabar. O déficit aumenta em 2020, a dívida pública acelera, mas em 2021 estaremos vivos para retomar a marcha da responsabilidade fiscal.

Precisamos mudar a chave e aumentar os gastos públicos, anátema que provoca calafrios numa equipe econômica treinada nos manuais de macroeconomia dos anos 70. A tarefa não se esgota em combater o vírus. A batalha principal será combater o obscurantismo, o preconceito e as ideias erradas de um governo que perdeu o rumo e não lidera. A recessão é inevitável. O colapso da economia é uma opção.*É ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM