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UM BRASIL SUFOCADO PELO ATRASO

Uso de precários fogões a lenha persiste nas regiões mais pobres e responde por 50% das mortes por poluição no País

Foto do author Fernando Scheller
Por Fernando Scheller , HORIZONTE e LIMOEIRO DO NORTE (CE)
Atualização:

Grávida do oitavo filho, Eliene da Costa Santos ganhou um fogão de uma conhecida; na verdade, é uma carcaça de fogão que não funciona. Mesmo se fosse novo, não teria uso: a casa de taipa em que a dona de casa de 34 anos vive com a família não tem botijão de gás. Mesmo assim, refere-se ao eletrodoméstico quebrado como “presente”. É em cima dele, deitado sobre quatro tijolos, que Eliene improvisou seu fogão a lenha. Agora, não precisa mais se agachar para cozinhar. Pode trabalhar em pé, enquanto cuida do filho mais novo e se prepara para a chegada do próximo.

Maria do Céu Costa Silva e sua nora Eliene da Costa Santos vivem na comunidade Km 60, em Limoeiro do Norte Foto: Hélvio Romero/Estadão

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A sogra de Eliene, Maria do Céu, mora em outra casa simples, construída no mesmo terreno. Tem fogão a gás, mas não o usa – não pode gastar R$ 50 no botijão. Teve 13 filhos, mas só quatro “vingaram”. Nove morreram pequenos – “de febre”, diz ela. Outro foi assassinado, já adulto, no ano passado. Ambas vivem na comunidade denominada Km 60, na zona rural de Limoeiro do Norte, município cearense a 210 km de Fortaleza. A estrada de chão batido que leva ao Km 60 é ladeada por grandes fazendas de frutas e fábricas de cal há muito desativadas. 

Eliene e Maria do Céu fazem parte de um contingente invisível no Brasil: famílias muito pobres, que vivem longe dos grandes centros e sobrevivem quase sempre da agricultura de subsistência e de programas de auxílio do governo. Cerca de 7 milhões de famílias brasileiras ainda usam a lenha como combustível na cozinha, sobretudo no sertão nordestino e na região amazônica, segundo organizações internacionais. “Há um componente de tradição, mas o que leva à queima da lenha é a necessidade econômica, a falta de alternativa”, diz o pesquisador Ricardo Teles, da Universidade de Aalbrog, da Dinamarca, que conduziu um estudo, em parceria com o Instituto Federal do Ceará (IFCE), sobre os impactos dos fogões a lenha na saúde de famílias cearenses.

A queima de lenha e carvão para cozinhar é uma das maiores preocupações de saúde globais, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Esses combustíveis liberam monóxido de carbono e micropartículas invisíveis, absorvidas pelos pulmões, causando problemas respiratórios que podem levar à morte. É como se cada habitante de uma casa com fogão a lenha fumasse dois maços de cigarro por dia, segundo a organização não governamental dinamarquesa Copenhagen Consensus. O efeito causado ao organismo por essa poluição interna é oito vezes maior do que o de toda a poluição do ar da cidade de São Paulo. 

Questão global. É por isso, segundo a OMS, que a poluição interna mata mais do que a externa. A queima de combustível dentro das casas para geração de energia é uma realidade para 3 bilhões de pessoas no mundo e causa cerca de 6 milhões de mortes por ano. Para combater o problema, foi criada uma aliança global que reúne universidades, ONGs e governos, com curadoria da Organização das Nações Unidas (ONU), visando à substituição de 100 milhões de fogões até 2020. As principais áreas de atenção são a Índia, onde 700 milhões de pessoas ainda queimam combustível dentro de casa para cozinhar, e os países mais pobres do mundo, sobretudo os da África ao Sul do Saara.

No Brasil, o problema é menor, mas um cálculo da Copenhagen Consensus – cuja meta é propor soluções baratas para problemas socioeconômicos globais – estima que cerca de 24 mil vidas sejam perdidas por ano por causa da poluição interna no País. Uma projeção do pesquisador Bjorn Larsen aponta que esse contingente é equivalente a quase 50% das mortes totais causadas pela poluição do ar no País (veja quadro acima). Segundo o instituto Data Popular, 96% das residências brasileiras têm fogões a gás. No entanto, a média cai para 93% no Norte e 91% no Nordeste, onde a renda é menor.

O engenheiro florestal Rogério Carneiro de Miranda, que presta consultoria em todo o mundo sobre a poluição interna pela queima de combustíveis e se dedica ao tema há 20 anos, afirma que as principais vítimas são as mulheres e crianças, que inalam mais fumaça por passarem mais tempo em casa. Miranda mantém uma fábrica de fogões a lenha em Minas Gerais. Ele diz que conseguiria produzir fogões eficientes por cerca de R$ 450, incluindo o custo para entrega no interior nordestino.

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Soluções. O consenso entre as entidades que pesquisam o tema é de que existem duas saídas viáveis para a substituição de fogões a lenha ineficientes. Uma delas é o uso do gás, em botijão ou encanado – o problema, neste caso, é a renda para pagar pelo combustível. A outra saída é a construção de fogões a lenha de melhor qualidade, que liberem a fumaça na atmosfera. Essa segunda alternativa é defendida pela Copenhagen Consensus. Segundo os cálculos da ONG, a escolha traria R$ 7 em economia – ao sistema de saúde, por exemplo – para cada R$ 1 investido. Já o fogão a gás, por ter um custo de instalação e manutenção mais alto, traria benefícios menores, entre R$ 2 e R$ 3 para um investimento de R$ 1.

Em termos estritamente econômicos, a substituição por fogões a lenha é mais barata. No entanto, o estudo de campo desenvolvido no interior cearense pela Universidade de Aalbrog e pelo Instituto Federal do Ceará mostra que, na prática, essa alternativa raramente se mostra eficiente. Na comunidade do Km 60, cerca de 250 fogões “melhorados” foram instalados nas residências pelo governo estadual. 

O professor Adeildo Cabral, do IFCE, explica, porém, que é difícil assegurar que a população fará a manutenção correta do equipamento. Na verdade, é quase impossível: na maior parte das casas visitadas pela reportagem do Estado, as chaminés estavam entupidas e toda a fumaça e o calor emitidos pelo fogão ficavam no ambiente, o que se refletia em grandes manchas negras nas paredes das cozinhas.

Eficiência. Em alguns casos nem a disponibilidade de duas opções ao fogão de má qualidade (o a gás e o a lenha "melhorado") foi suficiente para a mudança de hábito. A aposentada Antônia Vieira do Vale, 74 anos, de Horizonte, a 40 km de Fortaleza, recebeu um fogão a lenha patrocinado pelo governo estadual. No entanto, a exemplo de outros moradores de seu bairro, não gostou do formato. O modelo exige que a lenha seja picada em pequenos pedaços, pois a câmara do fogão é pequena – medida tomada justamente para evitar que a fumaça se espalhe. Resultado: aos poucos, Antonia foi descaracterizando o fogão, que terminou bem parecido com o que ela tinha anteriormente. A chaminé, entupida e enferrujada, não funciona. Como o fogo passa quase todo o tempo ligado, a parede da cozinha mal ventilada está toda tomada pela fuligem.

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Apesar de o marido, Manoel Chagas da Silva, 77 anos, reclamar da fumaça e dizer que não pode ficar na cozinha porque os olhos lhe ardem, Antônia não vê relação alguma entre o problema e a queima da lenha dentro de casa. O professor Adeildo Cabral explica que a questão é justamente essa: como as micropartículas se instalam nos pulmões ao longo dos anos, é muito difícil convencer a população de que o fogão a lenha – ou, mais especificamente, o mau uso dele – possa causar doenças graves ou até levar à morte. Dona Antônia, sentada ao lado da lenha que queima sem parar, está no time dos que não se deixam convencer. “Criei oito filhos sozinha. Lá de onde eu venho, a gente nem sabia o que era um botijão de gás. E está todo mundo saudável aqui. A fumaça não faz mal.”

Mas nem os que seguiram todas as especificações técnicas conseguiram uma boa relação com o novo fogão. Antônio Geraldo Almeida, de 42 anos, trabalha na construção civil e ajudou a instalar vários dos fogões patrocinados pelo governo. Em sua casa, fez tudo conforme o figurino: câmara fechada e chaminé constantemente limpa. Os responsáveis pelo projeto também exigiram que a instalação fosse feita em um ambiente interno. Geraldo, como é mais conhecido, conseguiu praticamente zerar a emissão de fumaça dentro de casa. No entanto, o local de instalação escolhido pelos técnicos tornou o uso do fogão quase inviável. Com a lenha queimando, a temperatura ambiente passa da marca de 60 graus. “Eles (os responsáveis pelo projeto) não pensavam que o calor poderia se expandir.”

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