Como usar a tecnologia com alunos ‘nativos digitais’ em sala de aula?

Escolas visam a ensinar crianças a fazerem uso mais consciente e aprofundado dos meios digitais, tornando-os protagonistas em vez de meros espectadores

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Por Isabela Moya
Atualização:

Crianças em tablets, computadores, jogos e celulares - os pequenos no mundo digital já são uma realidade, e isso não é um movimento a ser combatido, mas ensinado, segundo especialistas em educação. A chave da questão parece ser mostrá-los como lidar com o uso de tecnologias e da internet de forma que eles aprendam a se “autorregular”, ao mesmo tempo em que são estabelecidas ferramentas de segurança e privacidade para protegê-los.

Crianças já sabem mexer em ferramentas tecnológicas desde pequenos, mas isso não significa que sabem a melhor forma de se comportar dentro dos meios digitais. Foto: Leandro Rocha

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“O debate sobre tecnologia educacional deve sair do ‘se’ e evoluir para o ‘como’. Não podemos mais discutir se a tecnologia deve estar na escola, mas como isso deve acontecer”, diz a organização não-governamental (ONG) Todos Pela Educação, em documento sobre letramento digital.

Impedir crianças e adolescentes de usar as tecnologias digitais pode fazer com que eles não saibam como usá-la de forma saudável quando enfim tiverem acesso, além de deixar de prepará-los para o mercado de trabalho e para a vida social, cada vez mais conectados com o mundo digital.

É preciso encontrar o equilíbrio - nem uso excessivo, e nem restrição - , segundo Paulo Blikstein, professor e diretor do Laboratório de Tecnologias de Aprendizagem Transformadora da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. “Isolar a criança dos dispositivos digitais não tem sentido hoje em dia, porque quando acabar o isolamento, ela vai estar em um mundo que é dominado por essas tecnologias, vai enfrentar o mundo sem saber como lidar com isso”, ele afirma.

“Por outro lado, achar que tecnologia é totalmente maravilhosa e deixar elas livres também não é bom nem para as crianças, nem para os adultos”, pondera.

“As crianças observam a família usando laptop, celular, tablets. E elas utilizam esses aparelhos”, constata Ana Paula Gaspar, professora especialista em tecnologia e inovação educacional e assessora de Tecnologia e Educação do Instituto Vera Cruz.

“É preciso apresentar a tecnologia como um fenômeno social. Assim como fazemos esforço em criar esforço em criar ambientes de leitura, músicas, museus, também defendemos que as questões digitais sejam apresentadas às crianças”.

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A ideia de que a Geração Alpha é a de “nativos digitais” esconde o fato de que nascer em um meio não significa fazer bom uso dele, segundo a especialista. “Erroneamente, reproduzimos uma noção dos nativos digitais, em referência às crianças, como se elas tivessem nascido prontas. São nativas digitais, mas não alfabetizadas digitalmente. Não é porque estão imersas nessa cultura que estão prontas para lidar com ela”, ressalta.

Pensando nisso, escolas já têm inserido em seus currículos projetos para letramento digital. A Base Nacional Curricular Comum, que regula os currículos do ensino básico no Brasil, desde o ensino infantil até o ensino médio, prevê uma competência geral de “cultura digital”, que diz que o estudante deve ser educado para usos mais democráticos das tecnologias e para uma participação mais consciente na cultura.

“As escolas têm liberdade para decidir como fazer, se é numa disciplina isolada ou em projetos que atravessam os conteúdos. Mas [ter o letramento digital] é um direito, tem que ter, não é opcional”, afirma Gaspar.

No Colégio Magno/Magico de Oz, crianças do Ensino Infantil criaram um jogo para aprender as vogais em Braille Foto: Colégio Magno/Divulgação

O Colégio Magno/Mágico de Oz, na zona sul de São Paulo, trabalha, na Educação Infantil, os conteúdos curriculares contextualizados nos temas dos projetos, que aplicam o letramento digital conforme surgem as necessidades dos estudantes.

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Uma aula sobre alfabetização e direitos das crianças suscitou curiosidade em um aluno de 5 anos, da Educação Infantil, que perguntou como lêem e escrevem as crianças que não enxergam. Foi então que a professora decidiu realizar uma atividade com a sala para ensiná-los sobre o Braille, sistema de escrita e leitura tátil para as pessoas cegas ou com baixa visão feito por meio de pontos em relevo. “Eles aprenderam as vogais em Braille e criaram um jogo para ajudar crianças com problemas de visão a aprender a ler e escrever”, conta a professora de Tecnologia, Pensamento Computacional e Robótica da escola, Silvana Scavone.

Os alunos criaram o Jogo das Vogais em Braille, como foi chamado, a partir de um tabuleiro onde as crianças tocavam nas letras em Braille e ouviam o som da letra correspondente e uma palavra que começasse com a letra. Depois, programaram o jogo no Scratch, uma linguagem de programação de rápida aprendizagem. Então, gravaram os sons das letras e palavras e usaram um circuito eletrônico que, ligado ao computador, é capaz de transformar qualquer objeto em um botão touchpad.

“Nossa intenção com o letramento digital e pensamento computacional nem de longe é formar programadores. No caso dessa atividade das Vogais em Braille, o fato de alunos tão pequenos terem entendido de alguma forma que a tecnologia existe para facilitar e melhorar a vida das pessoas nos fez acreditar que estamos no caminho certo. Mais do que o produto final, tudo que acontece no processo é o que faz valer todo o aprendizado”, explica Scavone.

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Crianças de 5 anos criaram o Jogo das Vogais em Braille, que foi selecionado para ser apresentado em uma conferência na Universidade de Columbia, em Nova York. Foto: Colégio Magno/Divulgação

Os conceitos de pensamento computacional são introduzidos de uma maneira divertida, explica a professora. Algumas vezes, até mesmo sem o uso do computador, através das atividades “desplugadas”.

Já o Colégio Rio Branco, na região central da capital paulista, investiu na conscientização dos estudantes do 5° ano do Ensino Fundamental em relação à fake news, ensinando-os a identificar notícias falsas. Os alunos usaram uma planilha com critérios de verificação das informações para classificar as notícias e, assim, criaram um gráfico indicando os critérios que mais trazem possibilidade de uma informação ser mentira. Por fim, as crianças fizeram cartazes digitais com dicas de combate a fake news.

O aluno de 10 anos, Fernando Kusabara, conta que, depois da aula, aprendeu a fazer o exercício sozinho, mesmo sem a planilha. “A gente aprendeu a fazer na nossa mente”, ele diz.

Sua colega, Lorena Basso, de 10 anos, relata que chegou a usar os conhecimentos aprendidos fora da escola, com a sua família. “Uma vez eu recebi uma notícia da minha avó e vi que não tinha estudos de apoio, link, autor ou data. Percebi que era uma notícia falsa e falei para ela. Ela ficou surpresa e disse que ia passar a conferir”, lembra a estudante.

O professor de Tecnologia Educacional da escola, Jorge Farias, que aplicou a atividade para os alunos, ressalta a importância para o desenvolvimento das habilidades de cognição e raciocínio lógico das crianças, além da formação social. “Treinamos não só o ferramental, que enriquece muito o portfólio deles, eles têm ferramentas para trabalhos, mas também a cidadania digital, aprendendo a entender o mundo virtual e o papel deles nesse mundo”, diz.

Além das fake news, a turma trabalhou o combate ao cyberbullying, a proteção de identidade virtual e o comportamento em jogos online.

Na visão do professor, o letramento digital aparelha os alunos com posturas que os protegem no meio digital. “Ensino a eles a criarem contas vinculadas a de seus pais, não falarem com estranhem, controlarem o tempo de tela, nunca usarem fotos do rosto”, exemplifica.

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Tecnologia não é sinônimo de rede social

A tecnologia serve para ampliar o repertório de crianças e adolescentes, em uma época em que estão criando sua subjetividade a partir da relação com o outro, explica Gaspar. Mas isso não significa que as crianças devam frequentar redes sociais. Segundo a especialista, há um consenso global em diferentes disciplinas de que crianças não devem usar as redes, mas outros formatos digitais.

“Isso não impede de trazer para a discussão quais os pressupostos de uma rede social: diálogo, respeito, empatia, debate saudável. É possível trabalhar essas questões que preparam crianças para entrada na rede social na idade recomendada”, diz.

E com os adolescentes, é preciso continuar esse trabalho para que sejam capazes de se autorregular. “Os adolescentes são os primeiros que veem as agressões em redes sociais. Não há controle parental ou tecnologia que dê conta de descobrir essas questões [antes deles]”, afirma a em tecnologia educacional.

Não há, porém, um consenso que quantifique a quantidade de horas para um uso saudável seja das redes sociais ou de telas num geral. Os fatores decisivos são o tipo de conteúdo, o contexto em que está inserido e o objetivo de uso.

“Se está há duas horas em um jogo educativo ou programando, tudo bem, mas no TikTok, eu diria que já é demais”, afirma Blikstein.

Desafios no letramento digital

Desigualdade social e falta de infraestrutura, controle do uso excessivo de telas e formação de senso crítico. Essas são algumas das dificuldades enfrentadas pelos professores na hora de ensinarem seus alunos a se portarem no meio digital e a usarem as tecnologias a seu favor, de forma que se tornem criadores ativos.

Blikstein explica que existe um novo conceito de letramento digital, em que aprender a ser um “bom usuário” das ferramentas digitais já não é suficiente, é preciso entender o funcionamento por trás das tecnologias e ser um “produtor”.

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“Mas em um País tão desigual quanto o Brasil, o problema é que para fazer isso precisa de equipamentos, professores capacitados, e o que vemos nas escolas é que, quando há o letramento digital, é só o básico, só ensinam a ser um usuário. Nas escolas de elite, aí sim ensinam a como serem produtores, tem espaço maker, aula de programação. Tem um grande investimento nisso, os pais cobram porque sabem que é importante”, diz o especialista.

“Isso é preocupante porque estamos indo numa direção em que há uma pequena elite de crianças letradas digitalmente e a maioria que vive no mundo digital como meros usuários”, completa.

Mas a infraestrutura não é um impeditivo, afirmam Gaspar e Blikstein. Isso porque alguns conceitos que se aplicam ao mundo digital - como resolução de conflito, leitura crítica de mundo, respeito à diversidade e combate ao discurso de ódio, por exemplo - podem ser ensinados mesmo sem equipamentos. Para a prática, já existem ferramentas tecnológicas de baixo custo que podem ser adquiridas pelas escolas. E mesmo que não tenham acesso aos dispositivos em aula, crianças e adolescentes usam a internet e as ferramentas digitais fora dela.

Mais importante do que o tempo gasto com tecnologias é o uso e objetivo que é dado para as ferramentas digitais Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

Na sala de aula, chegar a um equilíbrio na exposição das crianças ao mundo virtual é uma dificuldade enfrentada por Farias. “Às vezes é muito difícil trazer os alunos de volta quando estão jogando. É preciso colocar limite e ensinar que há hora para jogar, hora para aprender e hora para fazer os dois juntos, aprender jogando”, relata o professor, que procura promover uma reflexão sobre os impactos nocivos que as tecnologias podem causar nas turmas em que leciona.

“Tentamos ensiná-los a ter autocontrole: ‘Quanto tempo estou usando [o dispositivo]? por que estou usando? Eu fiquei com a minha família? Fiz a lição de casa? Está me tornando uma pessoa melhor? Estou prejudicando alguém virtualmente’”, ensina o professor

Já para a coordenadora do Colégio Magno, Cláudia Tricate, “pensar em atividades inusitadas” para acompanhar a rapidez da geração atual tem sido um desafio. E para contornar isso, “a grande sacada”, ela diz, está nos adultos ouvirem as crianças.

“Temos que estar sempre acompanhando eles, as possibilidades das crianças são maiores que as nossas. Perceber o que elas se interessam, o que querem saber. Quando fazemos isso, surgem projetos muito legais”, diz.

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A formação dos docentes também precisa ser uma prioridade, segundo os especialistas, pois são eles que induzem e mediam as atividades em sala de aula. Blikstein não nega a necessidade de formar os professores para um uso da tecnologia, mas afirma que, na realidade brasileira atual, essa abordagem tem se mostrado insuficiente.

“Com o tempo que os professores têm [para formação continuada] é impossível formá-los em tecnologia. Muitas mudam rápido, em dois anos já viram obsoletas. O modelo de inserir na formação do professor não tem funcionado, precisa mudar a abordagem”, argumenta.

Para isso, ele defende que a “solução viável” para o Brasil atualmente é a inserção de um professor para aulas de tecnologia, mas também responsável por ajudar os outros professores a implementarem tecnologias em suas disciplinas tradicionais.

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