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‘Avaliação racial existe no País muito antes do vestibular’, diz professor em defesa de banca racial

Sociólogo defende bancas de heteroidentificação para coibir fraudes e recomenda a capacitação dos integrantes - e que sejam brancos e negros

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Por Gonçalo Junior
Atualização:
Foto: Dre Smith
Entrevista comJefferson Belarmino de FreitasPesquisador associado ao GEMAA e Professor Visitante na Penn State University

Jefferson Belarmino de Freitas é pesquisador associado ao Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade do Estado do Rio (Uerj), uma das instituições pioneiras na adoção de cotas raciais no Brasil.

Antes da primeira pergunta sobre se as bancas de análise racial são a melhor solução para evitar fraudes em cotas, o sociólogo já faz uma introdução. “Ainda não temos visão fechada. Estamos com pesquisas em andamento. Mas elas têm sido eficientes ao afastar brancos que seriam fraudadores”.

As comissões de heteroidentificação de candidatos a cotas voltaram ao centro do debate público após a banca da Universidade de São Paulo (USP) rejeitar a autodeclaração de pardo do estudante Alison Rodrigues e cancelar sua matrícula na Faculdade de Medicina. Ele conseguiu a vaga de volta na Justiça.

A foto do jovem circulou nas redes sociais, sob críticas de “tribunal racial”. Por outro lado, a USP e parte dos especialistas reafirmou o argumento de que o modelo foi criado para coibir fraudes em autodeclarações - isso ocorria com frequência antes de as bancas atuarem.

Os avaliadores das universidades se baseiam em critérios fenotípicos, ou seja, no conjunto de traços observáveis. Isso significa que analisam cor da pele, cabelos e formato da boca e do nariz para indicar se o candidato deve ou não entrar por meio da cota racial.

E a USP não está sozinha na polêmica: houve controvérsias similares em outras universidades que adotam o mesmo formato, como a Universidade de Brasília (UnB). A análise com base nas características físicas foi validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017.

Ao Estadão, Belarmino condena a análise de fotos como via única para verificar a autodeclaração dos candidatos e recomenda entrevistas presenciais (e não de modo remoto) para as avaliações. Além disso, o pesquisador defende a diversidade e o letramento racial dos integrantes das bancas.

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“Pessoas contrárias às cotas criam a ideia fantasiosa de que as bancas criaram a heteroidentificação no Brasil hoje”, avalia ele, hoje professor visitante na Penn State University, na Pensilvânia (EUA). “Isso sempre existiu. As pessoas classificam as outras racialmente o tempo todo.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Bancas de heteroidentificação para avaliar candidatos a cotas nas universidades promovem a discriminação racial?

Não. A ideia da política de cotas é atacar uma discriminação negativa porque as instituições entendem que parte das vagas tem de ser destinada para aquele público-alvo. As bancas têm papel corretivo de atacar uma desigualdade. Quem está sendo discriminado pelas bancas? Essa alegação, de que as bancas produzem racismo, é feita por pessoas contrárias à própria política de cotas.

As bancas funcionam?

As bancas têm sido eficientes no sentido de afastar brancos que seriam fraudadores do sistema. Relações raciais são confusas. Muitas pessoas não têm formação sobre as relações sociais brasileiras. A confusão é normal, mas são necessários critérios de avaliação, um modus operandi, cortes para definir quem é negro e quem não é. Esses parâmetros variam muito de instituição para instituição.

Por exemplo?

O principal é evitar que apenas as fotos sejam utilizadas para a definição. Bancas presenciais são muito mais efetivas. Os avaliadores não precisam avaliar somente a textura do cabelo, o tipo do nariz, fazer um check-list traço a traço.

O mais importante é olhar de modo amplo e se perguntar se aquela pessoa seria discriminada racialmente. As pessoas conseguem responder se determinada pessoa seria discriminada pela polícia.

Também é preciso criar cursos de capacitação para que as pessoas entendam como funcionam as relações raciais no Brasil e como foram estabelecidas historicamente.

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Olhar para as características físicas é a principal forma de definir se o candidato é negro?

Podemos pensar em categorias que considerem a autoidentificação. Uma entrevista pode explorar a questão da ancestralidade. Um branco pode falar que o avô é negro. Isso tem peso. Mesmo com a pele um pouco mais clara, ele pode ser sido considerada, ao longo da vida, como o mais escuro da família e ter sido discriminada por isso.

Muitos cotistas negros só se reconhecem como tal na universidade. É um ponto de virada. Como exigir que uma pessoa se defina como negra se a gente sabe que se existe racismo no Brasil e você não tinha vontade de ser negro?

O estudante Alison dos Santos Rodrigues foi aprovado em Medicina, mas teve a matrícula recusada por causa da autodeclaração como 'pardo' Foto: Arquivo pessoal/Laise Mendes dos Santos

Pardos têm sido o ponto central dessa discussão. Como definir se alguém é pardo ou branco?

As bancas precisam criar procedimentos para lidar com as categorias intermediárias. A raça não é objetiva. É uma ideia social que muda de lugar para lugar. Raça não é uma ideia homogênea no Brasil inteiro.

Também é importante dar ao candidato a possibilidade de recorrer da decisão, em caso desfavorável, e que ela seja examinada por novas bancas. Quanto mais pessoas avaliam, maior chance de a avaliação ser correta.

Ser pardo na Região Norte é diferente de ser pardo do Sul?

Sim. Eu cresci no Taboão da Serra (Grande São Paulo), estou na Pensilvânia, já estive em Illinois, Nashville (todas nos EUA) e as coisas variam de região para região. No Brasil, não é diferente. A ideia de pardos no Norte do Brasil é diferente da ideia de pardos em São Paulo.

Na dúvida, a pessoa precisa ser aprovada. Se uma hipotética banca diversa com cinco integrantes tiver o placar de 3 a 2, o candidato deve ser aprovado. Raça não é objetiva. Não existe objetividade plena nas avaliações. Juízes do Supremo Tribunal Federal votam de forma diferente sobre a mesma temática.

As bancas devem ser diversas em sua composição?

Sem dúvida. De maneira geral, isso está previsto nos editais. Mas as instituições têm dificuldades nesse aspecto. O problema é que existem instituições que têm dificuldades de trazer a diversidade para as bancas porque existem poucos professores e servidores negros.

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Como capacitar o integrante de uma banca de heteroidentificação?

Com um curso sobre relações raciais, com o histórico e as particularidades locais. É preciso avaliar procedimentos, como avaliação do fenótipo. Uma pergunta importante é: essa pessoa seria discriminada?

Por que as bancas de análise racial receberam tantas críticas?

Pessoas contrárias às cotas criam a ideia fantasiosa de que as bancas criaram a heteroidentificação no Brasil. Avaliação racial existe no País muito antes de chegar ao vestibular. Isso sempre existiu. As pessoas classificam as outras racialmente o tempo todo. Quanto mais escuro, mais discriminado.

Homens negros das periferias brasileiras cresceram com suas mães dizendo que era preciso sair de casa com o documento. Algumas pessoas se incomodam de o Estado ter de validar isso, mas as políticas de cotas precisam ter alguns parâmetros.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade do Estado do Rio (Uerj), uma das instituições pioneiras na adoção de cotas raciais no Brasil.

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