Enem: alunos pretos têm notas mais baixas que brancos em escola particular ou pública, diz estudo

Desigualdade aparece nas chances de ingressar na universidade, mostra pesquisa inédita que analisou desempenho na prova ao longo dos anos

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Por Renata Cafardo
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Pesquisa inédita que analisou as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) entre 2013 e 2021 mostra que alunos pretos, pardos e indígenas têm notas mais baixas do que brancos e amarelos, mesmo estudando em escolas particulares e com nível socioeconômico parecido. A desigualdade racial aparece no desempenho na prova e também nas chances para conseguir uma vaga no ensino superior.

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O estudo tabulou ao longo dos anos as notas do Enem com as quais os estudantes conseguiram ser aprovados em cursos mais e menos competitivos no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), do Ministério da Educação (MEC), que é hoje o maior vestibular do País.

Os resultados, segundo os autores, reforçam a importância da continuidade de políticas de cotas raciais no Brasil.

Enquanto a probabilidade de um aluno branco da rede particular estar entre as notas mais competitivas do Enem é de 33%, a de um estudante preto, pardo ou indígena também da rede privada é de 25%, mostra o estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com o Instituto Unibanco.

Notas do Enem são registradas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o maior vestibular do País. Na imagem, estudantes chegam a local de prova do Enem em São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

Na rede pública, também há diferença de desempenho, porém menor. As probabilidades de pretos, pardos e indígenas estarem entre as notas mais competitivas para ingressar no ensino superior é de 7%, enquanto entre brancos e amarelos é de 10%. Mais de 80% dos alunos de todo o País estão nas redes públicas de ensino.

As notas competitivas são as que permitem entrar em cursos mais concorridos, como Medicina, Direito e Engenharias em conceituadas universidades do País. Em 2021, elas ficaram acima de 619 pontos no Enem, numa escala de 0 a 1000.

A desigualdade é ainda maior quando se compara os dois extremos. A chance de um aluno branco da rede particular estar entre as notas mais competitivas do Enem é de 33%, enquanto a de um estudante preto, pardo ou indígena da rede pública é de 7%.

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Cotas raciais

O estudo menciona a importância da continuidade de políticas de cotas para pretos, pardos e indígenas para ingresso na universidade e afirma que, ao se analisar as desigualdades no Brasil, “a dimensão racial não pode ser reduzida à dimensão socioeconômica”.

“Essa desigualdade racial é fruto de elementos socioculturais e escolares que mitigam as oportunidades dos estudantes pretos, pardos e indígenas diante dos estudantes brancos/amarelos ao longo da educação básica”, diz a pesquisa.

Essa desigualdade racial é fruto de elementos socioculturais e escolares que mitigam as oportunidades dos estudantes pretos, pardos e indígenas diante dos estudantes brancos/amarelos ao longo da educação básica.

Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com o Instituto Unibanco

Desde 2012, o País tem a chamada Lei de Cotas, que prevê reserva de vagas em universidades para estudantes de escolas públicas com um percentual também para pretos, pardos e indígenas. Neste ano, as regras estão sendo rediscutidas no Congresso, como previa a legislação.

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“A educação básica não conseguiu lidar com as desigualdades e as cotas auxiliam que elas não se reflitam de forma instantânea no ensino superior”, diz Daniel Castro, do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais da UFRJ, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo. “Os resultados mostram que estudantes brancos têm maiores possibilidades de escolha no vestibular”, completa.

A pesquisa sugere que haja ainda um “aprimoramento” das políticas de ação afirmativa em “determinadas carreiras e instituições de maior prestígio social” para estudantes de escolas públicas e também por perfil racial. Isso porque a baixa competitividade das notas desse grupo no Enem cria uma “uma barreira quase intransponível” para que sejam aprovados, segundo os pesquisadores.

João Calebe Sampaio, de 19 anos, que entrou na UFRRJ pelo sistema de cotas Foto: Pedro Kirilos/Estadão

O carioca João Calebe Sampaio, de 19 anos, defende as cotas raciais por uma questão de reparação histórica e como forma de diminuir as dificuldades impostas pelas condições de ensino. Calebe morou a vida toda no Complexo do Muquiço, comunidade da zona oeste do Rio, e ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) por meio de políticas afirmativas.

“Sempre estudei em escolas públicas, localizadas em territórios favelizados, com presença de facções criminosas, com constantes tiroteios. Muitas vezes as aulas foram canceladas por causa de tiroteios, e isso dificultava os estudos”, diz ele.

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Para ele, as cotas foram essenciais, pricipalmente depois de cursar o ensino médio durante a pandemia. “O ensino sempre foi meio robótico. Era aquele negócio de a professora passar a pergunta no quadro, você levava pra casa e respondia”, diz ele.

“Eu entrei por cotas, e no primeiro ano, fui o melhor aluno. De cinco matérias, tirei 10 em quatro. Isso prova que, quando se dá igualdade de condições, o resultado é parecido”, afirma.

Diversos estudos têm demonstrado o bom desempenho dos cotistas em cursos superiores, muitas vezes melhor do que do não cotista. Na semana passada, o Estadão mostrou que as notas dos alunos cotistas, que ingressam no ensino superior em vagas reservadas para negros, pobres e indígenas, são equivalentes às dos demais estudantes, de acordo com estudo que analisou 53 pesquisas sobre o desempenho dos beneficiários de políticas afirmativas no Brasil na última década.

Diferença nas notas

Considerando somente as notas no Enem, ao longo dos anos, as desigualdades raciais aumentaram em 36%. Em 2021, a diferença na média entre os brancos e amarelos e pretos, pardos e indígenas foi de 14 pontos, a mais alta registrada no período.

Entre os estudantes dos dois grupos que cursaram somente a rede particular, a disparidade é maior ainda, de 16 pontos. Brancos e amarelos que estudaram na rede privada tiveram nota média de de 580, enquanto pretos, pardos ou indígenas fizeram 564 pontos.

Para os pesquisadores, os governos precisam pensar em políticas educacionais que olhem para essas desigualdades. “Programas de recomposição de aprendizagens precisam ter foco em alunos em vulnerabilidade”, diz o coordenador de inovação em políticas do Instituto Unibanco, Caio Callegari.

O estudo Oportunidades Educacionais de Estudantes Concluintes do Ensino Médio foi conduzido também pelos pesquisadores Tiago Bartholo, Flavio Carvalhaes e Melina Klitzke. Eles analisaram os microdados do Enem e do Censo Escolar ao longo dos anos, além das informações do Sisu, para chegar aos resultados.

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Este ano, são 220 mil vagas no Sisu em 128 instituições de ensino superior públicas, sendo 63 universidades federais. O estudante inclui a nota do Enem e consegue visualizar em quais cursos ele pode ser aceito com seu desempenho.

A pesquisa não registrou diferenças significativas de gênero no resultado do Enem. / COLABOROU MARCIO DOLZAN

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