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Após agressão e coma alcoólico de calouro, trote vira caso de polícia

Aluno é ferido com chicote em Leme; na capital, veteranos de várias instituições ainda usam antiga forma de recepção

Por Simone Iwasso , Tatiana Favaro e Bras Henrique
Atualização:

Dez anos após a morte do calouro Edison Tsung Chi Hsueh durante um trote na Universidade de São Paulo (USP), a recepção violenta e abusiva aos novos estudantes continua pelo País. Na primeira semana de aula, cenas de alunos rolando no chão, sendo forçados a ingerir bebidas alcoólicas, sofrendo mal tratos e humilhações se repetem dentro e fora das instituições, sejam tradicionais ou novas. Um exemplo grave aconteceu em Leme (a 188 km de São Paulo), onde um aluno foi vítima de agressão física e entrou em coma alcoólico. Você passou por trote? Dê seu depoimento Opine: o trote deveria deixar de existir? Leia tudo sobre a recepção aos calouros O estudante Bruno César Ferreira, de 21 anos, calouro do curso de Medicina Veterinária do Centro Universitário Anhanguera Educacional, em Leme, foi ferido com um chicote, obrigado a se jogar numa lona com excrementos de animais e aves em decomposição, amarrado a um poste onde recebeu chutes no abdome e na cabeça, obrigado a beber pinga e acabou internado na Santa Casa do município, em coma alcoólico. "Depois de tudo isso, sentei em uma cadeira e um veterano me chutou. Me contaram que caí, bati a cabeça, fiquei desacordado. Foi quando me levaram para uma república (casa de estudantes) para tentar me reanimar. Como não conseguiram, me largaram na rua, como indigente", conta ele. "Se fazem isso com um ser humano, imagina o que esses futuros médicos veterinários farão com um animal", diz. Bruno foi levado ao hospital pela mãe de uma aluna que o encontrou na rua. Foi liberado na tarde de anteontem. "Não aguento de dor no abdome", disse. "Para lá (Anhanguera) eu não volto. Eles estão educando vândalos, não futuros profissionais", afirmou ele. O caso foi registrado no 1º Distrito Policial da cidade. A polícia tem suspeitos, mas ainda vai ouvir a vítima e testemunhas. Por meio de nota oficial, a Anhanguera Educacional informou que é totalmente contra o trote violento. Sobre o incidente, ocorrido dentro do câmpus, a instituição informou que colocou um médico à disposição do aluno, abriu uma sindicância para apurar responsabilidades e vai tomar medidas cabíveis. A Anhanguera Educacional se transformou em um conglomerado de instituições. A rede abriu seu capital na bolsa e passou por um processo de aquisições no último ano. Em São Paulo, apesar de ser proibido, o trote também aconteceu em uma série de instituições. Na PUC, mesmo com as iniciativas de combate da reitoria, seis alunos passaram mal por excesso de álcool. Na Escola Politécnica da USP pelo menos 30 estudantes tiveram de ser levados ao hospital por uma ambulância. Calouros tiveram os cabelos raspados e foram jogados na lama. As justificativas dos responsáveis pelo trote são parecidas, e sempre caem no apelo à tradição. "É uma festa. Participa quem quer e ninguém é obrigado a nada", afirma o diretor do grêmio da Poli, Giuseppe Gabriel, do terceiro ano de Engenharia Civil. No câmpus de Ribeirão Preto da USP os rituais foram parecidos - e um canal foi aberto para que estudantes possam denunciar abusos. Na semana passada, alunos do Mackenzie foram acusados de agredir um morador de rua durante o trote. "Infelizmente, as instituições universitárias não querem abolir esse trote violento, enxergando o trote como sinal de prestígio", diz Antonio Almeida Junior, professor da Esalq, faculdade de Agronomia da USP e conhecida por trotes violentos que duram o ano todo. "É muito raro ter punição. Elas falam que vão abrir sindicâncias, mas nunca dá em nada, ninguém é punido", completa ele, que nos últimos anos tem se dedicado a pesquisar os trotes. Segundo o professor, a tentativa de combater o trote na Esalq, onde calouros são humilhados, apanham, são levados para o mato e abandonados, dividiu a comunidade. A direção divulgou um comunicado proibindo o trote violento e impondo punições. Os alunos entraram na Justiça contra a decisão - e perderam. "Há pais que mandam os filhos para o trote, para receberem e darem, porque eles passaram por isso." O ritual se propaga Calouros fazem pedágio nas ruas de SP para arrecadar dinheiro enquanto veteranos esperam. Também são obrigados a se jogar na lama, como no caso da Escola Politécnica da USP, e são atendidos após passarem mal por excesso de álcool, como aconteceu próximo à PUC-SP. Mesmo com iniciativas para coibir o trote violento, promovendo recepção solidária, a prática continua na primeira semana de aula.

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