
Os transtornos mentais sempre foram um tema caro para Machado de Assis. Como outros artistas geniais, ele usava os distúrbios psiquiátricos como uma lupa: os exageros e as deficiências nada mais eram do que maneiras de melhor entender a natureza humana, objeto final de sua investigação.
No pouco conhecido conto A ideia do Ezequiel Maia, publicado em 1883, Machado descreve um homem que, apesar de muito inteligente, aos poucos é tomado por uma espécie de obsessão que acaba dominando sua vida. "Era inteligente e lido; formara-se em matemáticas, e os professores desta ciência diziam que ele a conhecia como gente". No entanto, sempre fora dado a devaneios, fantasias, que lentamente foram ganhando força. Não houve um surto repentino, mas uma progressão contínua: "parece também que ele não tocou de um salto o fundo do abismo, mas escorregando, indo de uma restauração da cabala para outra da astrologia, da astrologia à quiromancia, da quiromancia à charada, da charada ao espiritismo, do espiritismo ao niilismo idealista", completa o autor.
Ciente disso ou não, Machado descreve um quadro clínico que só muito tempo depois seria formalizado como diagnóstico, o transtorno de personalidade esquizotípica. Tal transtorno na maioria das vezes começa no início da vida adulta, mas pode já dar sintomas na adolescência. Estes se dividem em três grandes grupos: 1) cognição-percepção - marcado por distorções cognitivas ou perceptivas, ilusões, crenças excêntricas e pensamento mágico; 2) interpessoais - ausência de amigos próximos, ansiedade social; 3) desorganização-excentricidade - pensamento estranho, fala peculiar, comportamentos excêntricos. Simplificadamente, trata-se de uma forma branda de esquizofrenia, em que o contato com a realidade fica frouxo, mas não se perde totalmente. Machado é tão preciso em sua descrição que inclui detalhes sutis do diagnóstico, como os grandes tratados elaborados por esses pacientes. Suas ideias mirabolantes não raras vezes os motivam a escrever longos textos, que para eles irão mudar o mundo. "Escreveu sobre este assunto uma extensa memória, em que provou a todas as luzes que a primeira ideia do homem foi o círculo(...)".
Lembrei desse conto ao ler a notícia sobre um rapaz desaparecido em Rio Branco, no Acre. Segundo os pais ele sempre fora diferente, tinha como amigos apenas os mendigos e outros excluídos. Na adolescência passou a achar que tinha estudado pouco, e começou a ler de forma exagerada. Então, com cerca de 20 anos, começou um grande projeto, que mantinha em segredo, mas que iria "mudar a humanidade de uma forma boa", segundo disse para a mãe. Começou a escrever livros, tentando patentear uma teoria que tinha criado. Até que há cerca de um mês os pais viajaram e ele se trancou no quarto durante três semanas, desaparecendo em seguida. Quando o cômodo foi aberto, continha 14 livros em código, as paredes cobertas de textos enigmáticos, além de um quadro retratando o rapaz sendo tocado por um alienígena e uma estátua do filósofo Giordano Bruno.
Claro que não se pode dar um diagnóstico à distância, ainda mais com informações tão incompletas. Talvez o rapaz seja mesmo um visionário - de acordo com seu pai, o psicólogo que o acompanhava disse que ele era "uma pessoa normal com uma grande ideia". Mas fico receoso, pois é a grandeza que muitas vezes atrapalha. Como no caso de Ezequiel Maia, o problema não está em ter ideias grandiosas. A doença surge quando, de tão grandes que são, as pessoas perdem o controle sobre as ideias e passam a ser por eles controladas.
***
Leitura da mente

Sobre essa relação entre literatura e psiquiatria, peço licença para indicar hoje um livro em que sou co-autor com o Professor Táki Cordás. Fico à vontade para elogiar porque os textos não são todos meus, mas de vários profissionais da saúde mental que aceitaram o desafio de analisar clássicos da literatura universal à luz da psiquiatria, psicologia, psicanálise e até das neurociências. Com isso vemos como arte e ciência podem se unir para o melhor entendimento da natureza humana. Embora não seja um lançamento, Personagens ou Pacientes - Clássicos da Literatura Mundial para Refletir sobre a Natureza Humana (editora Artmed,2014), deve se manter atual enquanto os clássicos também forem.