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Opinião|'É a primeira vez que se vê campanha difamatória patrocinada por quem deveria estimular a vacinação'

Pediatra defende vacinação de crianças contra a covid e comenta o vazamento de seus dados pessoais por deputada

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Atualização:

 

 

Desde o início da pandemia, a invenção de uma vacina contra a covid-19 era a principal esperança de um retorno a uma vida minimamente parecida àquela que tínhamos antes de descobrir que os Sars-cov 2 provocava uma infecção mortal (que até hoje já vitimou mais de 5 milhões de pessoas em todo mundo.) A imunização começou em dezembro no Reino Unido, em janeiro por aqui, e mês passado chegou a boa notícia para pais e mães de crianças de 5 a 11 anos: a Anvisa, nosso órgão regulador, liberava o imunizante da Pfizer para a população pediátrica. Mas em vez de a gente ir feliz ao posto de saúde mais próximo e vacinar os nossos filhos, temos encarado uma campanha maciça de desinformação contra a vacina capitaneada pelo próprio Ministério da Saúde,  presidente da República e seus apoiadores, que têm usado todos os meios para desestimular e descredibilizar a vacinação - primeiro acenando à possibilidade de ter de pedir prescrição médica para a vacina (algo inédito nos 49 anos do PNI, o Programa Nacional de Imunizações), depois falando sobre possíveis efeitos colaterais e mortais da vacina e até em 'infanticídio', como em um post feito pelo pastor Silas Malafaia na noite desta segunda-feira, 10/01, removido pelo Twitter por 'violação das regras' de uso da plataforma.

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Pelo menos 30 países já começaram a vacinar suas crianças, alguns com a vacina da Pfizer, como os Estados Unidos, outros com a vacina da chinesa Sinopharm, como a Argentina. China e o Chile usam a Coronavac (que já protocolou pedido para a Anvisa liberar por aqui o uso dessa vacinação da população pediátrica) e Cuba aplica em suas crianças a Soberana 02, vacina criada e produzida no país, ou seja, vacinar crianças contra a covid não é mais novidade, como muitos podem acreditar. Novidade é ter que encarar uma campanha difamatória capitaneada por quem deveria estimular a vacinação, afirma o pediatra, infectologista, e diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o médico Renato Kfouri. "Hoje nós temos uma luta a mais para travar - não é só pra trazer as vacinas, não é só pra colocá-las no programa de vacinação, mas é também convencer, ou melhor, informar a população que vem sendo desinformada com notícias falsas, essa é a expressão mesmo, notícias falsas". Ele conversou com o blog sobre o assunto.

Blog: Pais e mães têm sido inundados com informações conflitantes sobre a vacina inclusive vindas de autoridades públicas, como ministro da Saúde e presidente da República, que batem na tecla de 'possíveis riscos' de imunizar crianças dessa faixa etária de 5 a 11 anos contra a covid. Os pais têm algo a temer quando o assunto é essa vacina aprovada pra esse público específico?

Kfouri: Olha Rita, as vacinas na pediatria passaram pelos mesmos processos que as vacinas passaram pra serem licenciadas para os idosos, para os adultos, para as gestantes, para os adolescentes. Cumpriram os dados de estudos de segurança de fase 1, 2, 3, mostraram sua eficácia e foram autorizadas pelas agências regulatórias de praticamente todo o mundo. Então, o mesmo rigor que nós tivemos pra licenciar, avaliar nas outras faixas etárias tivemos também pra pediatria, e as vacinas se mostraram seguras, altamente seguras. Os efeitos colaterais raros quando acontecem de longe, de longe não superam os benefícios que essas vacinas trazem. Então as vacinas estão sim seguras, estão aprovadas, já temos inclusive experiência de mais de 8 milhões de doses aplicadas nos Estados Unidos confirmando essa segurança.

 

Blog: Ou seja, essa vacina da Pfizer ela foi aplicada nesse público infantil em alguns países, inclusive Estados Unidos, e os resultados dessa aplicação na vida real já estão sendo mensurados, já estão sendo analisados.

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Kfouri: Exatamente. Uma recente publicação dos Estados Unidos com 8 milhões de doses de vacinas da covid aplicadas em crianças entre os 5 e 11 anos de idade  mostra que os efeitos colaterais são raríssimos, muito semelhantes às outras faixas etárias. Cerca de dois milhões e meio dessas crianças já receberam inclusive a segunda dose da vacina, mostrando como são seguras essas vacinas na população pediátrica. Os efeitos colaterais são dor local e febre e eles foram mais raros ou menos frequentes do que em adolescentes de 12 a 17 anos. E olha que a gente já vacinou praticamente toda a população adolescente no país aqui acima de 12 anos com a primeira dose, e foi muito tranquilo. Então, se as crianças de 5 a 11 anos ainda têm menos reação que os adolescentes isso é um dado extremamente positivo, que nos reafirma que as vacinas são seguras, que a gente deve vacinar com muita tranquilidade nossas crianças aqui no Brasil aqui também.

Blog: A máquina de notícia falsa contra essa vacina tá funcionando a todos vapor, inclusive há dados falsos sendo compartilhados inclusive por membros do governo. O senhor falou de efeitos colaterais raros, quais são esses efeitos e o quão raros eles são?

Kfouri: Cerca de 98% dos efeitos colaterais reportados são esses comuns: febre, dor no local, mal-estar. Efeitos mais graves, como reações alérgicas graves, inflamação no coração, a miocardite, são reportados em menos de 1% dos casos da vacina aplicada. E quando nós vamos avaliar esses efeitos, todos eles não tiveram como desfecho algo grave, não houve morte relacionada à vacina. Ou seja, a vacina eventualmente pode trazer algum efeito, mas jamais vai levar alguém a uma reação grave como a morte. Então a vacina vai prevenir muito mais casos, evitar muitas hospitalizações, reduzir a carga da doença na população toda, e raríssimamente em algumas crianças, especialmente em crianças predispostas, alguns efeitos podem acontecer. Mas de longe os benefícios que as vacinas trazem superam esses riscos pequenos. E isso vale pra todas as vacinas, é importante deixar claro que a vacina do sarampo, a vacina de febre amarela, a vacina de catapora, a vacina de meningite podem dar também esses efeitos colaterais. Eles não são mais frequentes esses efeitos, mesmo os graves, raros, do que nenhuma outra do calendário de hábito, por exemplo, que a gente vacina há décadas as nossas crianças.

Blog: Como o senhor vê esse esforço concentrado de parte do governo e de apoiadores do governo contra a vacinação de crianças?

Kfouri: Olha, Rita, infelizmente é a primeira vez que a gente vê uma campanha difamatória de vacinas patrocinada por quem deveria na verdade estimular a vacinação. Pela primeira vez a gente vê o Ministério da Saúde lançando uma campanha de vacinação na pediatria quase que pedindo desculpas por estar colocando vacina pra população pediátrica, não tendo uma palavra de incentivo à vacinação, constrangidos, porque os dados científicos são robustos, pressionados pela sociedade médica, pressionados pela comunidade científica. O governo antivacina não conseguiu barrar a entrada de uma medida tão efetiva, que é a imunização. Então hoje nós temos uma luta a mais para travar - não é só pra trazer as vacinas, não é só pra colocá-las no programa de vacinação, mas é também convencer, ou melhor, informar a população que vem sendo desinformada com notícias falsas, essa é a expressão mesmo, notícias falsas. Nós precisamos de fontes de confiança para a população se sentir segura. Um dos pilares fundamentais do sucesso de um programa de vacinação é a confiança. Então nós precisamos resgatar essa confiança. Uma vacina que está no calendário de vacinação, como vacina o seu filho para meningite, para pneumonia, gripe, sarampo, é uma vacina que você deve comparecer, levar o seu filho pra vacinar. Sem dúvida é uma vacina que vai trazer enormes benefícios - individuais, para as crianças que vão deixar de ter covid, e coletivos, à medida que a gente aumenta o número de vacinados.

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Blog: Doutor, a gente sempre ouviu falar que os efeitos da covid são leves nas crianças, são mais leves. Então por que é que é importante vaciná-las?

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Kfouri:  O risco de desenvolvimento de formas graves da covid-19 na criança e no adolescente é muito menor do que em adultos, isso é evidente, desde o começo da pandemia isso é visível por onde essa pandemia vem passando, as crianças têm um risco menor. Mas quando a gente comparar este risco com outras doenças na população pediátrica, esse risco é infinitamente superior. Mesmo ele sendo menor proporcionalmente que adultos, quando a gente compara risco de hospitalização e morte de covid comparado com sarampo, com gripe, febre amarela, meningite, diarreias, pneumonia, hepatite, tuberculose, essas doenças todas que tem vacinas no calendário infantil, se nós somarmos as mortes que essas doenças causam, só a covid-19 matou mais do que todas elas juntas. A covid hoje é uma doença prevenível por vacina que mais vitima nossas crianças e adolescentes no país. Como se não bastasse, a gente não coloca uma vacina no calendário só pra prevenir morte né, Rita, se fosse assim não vacinaríamos contra catapora, contra caxumba, contra rubéola, são doenças que matam pouco, mas trazem um enorme impacto pra sociedade, ocupam leitos hospitalares, trazem sequelas de longo prazo, causam dor para as nossas crianças, sofrimento pra todas elas, transmissão comunitária. Então, quando você introduz uma vacina no programa de saúde, você não olha só pra quantas pessoas morrem por aquela doença pra ver se vale a pena ou não vacinar, você olha pro problema como um todo.

A covid-19 é um problema grande para nossa população pediátrica, leva a complicações como a síndrome inflamatória, que já vitimou praticamente 100 crianças no país, leva a complicações como a covid longa, que tem deixado sequelas em muitas das nossas crianças, leva a problemas de transmissão, surtos em escolas e dentro de famílias, muitas vezes tendo a criança como a fonte da contaminação. Então nós temos razões de sobra pra vacinar nossas crianças, Rita, mesmo que elas sejam menos acometidas que os idosos e os adultos pelas formas graves, temos razões éticas, sanitárias, epidemiológicas, razões de saúde que justificam uma vacinação imediata. E numa nova onda, como nós estamos vivendo a ômicron, que busca ou que acomete hoje mais as pessoas não-vacinadas, as crianças hoje representam uma parcela importante dos não-vacinados do nosso país.

Blog: Inclusive era sobre isso que eu ia falar. A gente tem assistido a essa escalada no número de casos nesse cenário onde a maioria da população adulta já tomou ou tá prestes a tomar a terceira dose, os adolescentes já estão com duas doses. E quando a gente olha nessa população apenas as crianças estão sem nenhuma dose, e as aulas elas voltam no final de janeiro, no começo de fevereiro. Qual que é o risco disso nesse contexto?

Kfouri: A gente tem visto que a ômicron não tem poupado indivíduos vacinados, a grande parte das pessoas que estão se contaminando, dos adultos, são adultos vacinados, que têm em função da vacinação um curso bem mais leve da doença. Nós temos visto pouca hospitalização entre indivíduos vacinados, a grande parte daqueles que ainda hospitalizam, que vão parar em terapia intensiva são aqueles que não estão com a sua vacinação em dia. Então a vacina não tem sido suficiente pra prevenir a evolução para as formas graves da doença, e este é um dado importantíssimo. E as crianças não têm nenhuma dose né, Rita, é diferente de nós adultos que já tomamos duas ou três doses muitos de nós, as crianças não tomaram nenhuma.

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E por mais que elas tenham riscos menores para as formas graves, quando você aumenta muito o número de casos, se você tem 1% só das crianças evoluindo para as formas graves, 1% de 10 casos é uma coisa, 1% de um milhão de casos é outra coisa.

Blog: A gente ainda não tem ali uma data específica de quando essa vacinação na população pediátrica vai começar, embora a gente saiba que ela vai começar ainda em janeiro. Como é que o senhor vê isso antes dessa volta às aulas?

Kfouri: Nós temos aí a previsão de 3 entregas de doses em janeiro - um milhão e 250 mil pra dia 12, 19 e 26 de janeiro, em fevereiro mais 16 milhões. A população brasileira de 5 a 11 anos é de 20 milhões de crianças, o que possibilitaria nós oferecermos uma primeira dose até o final de fevereiro pra 100% das crianças, ou seja, isso trará uma proteção a partir da metade de fevereiro, já que a vacina leva pelo menos 2 semanas pra conferir proteção e certamente a volta às aulas ainda será num cenário de boa parte das nossas crianças sem a primeira dose estar fazendo efeito. Então vai provavelmente depender do andamento da epidemia, trazer talvez um começo de aula com algumas restrições ou em modelo híbrido ou em modelo de maior distância, e nós vamos precisar avaliar o momento da epidemia em cada local e as medidas a serem adotadas em termos de evitar o contágio nas escolas, essas medidas precisarão ser adotadas de acordo com esse momento epidemiológico. Agora, é claro, jamais deixar as crianças mais tempo fora da escola. As escolas devem ser as últimas a serem fechadas em momentos de restrições.

Blog: O senhor foi um dos médicos que participaram da audiência pública sobre vacinação, ocorrida depois da aprovação da Anvisa, ou seja, em um momento em que já havia uma aprovação e em tese nada a se discutir. Na sequência o senhor foi um dos médicos que tiveram os dados pessoais vazados por uma parlamentar, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, a deputada Bia Kicis. Como é que o senhor vê um cenário de intimidação como esse, de vazar dados de médicos que são favoráveis à vacinação?

Kfouri: É lamentável né, Rita, é  lamentável a gente ver ataques pessoais à Anvisa, é lamentável que a gente tenha inclusive dados pessoais de pessoas que se dedicam à imunização no país há tantos anos divulgados por má fé. Isso é um crime contra a Lei de Proteção de Dados do país. E certamente, se não for investigado e penalizado pelo próprio ministério, outras ações judiciais do Ministério Público certamente acontecerão. A gente só lamenta, lamenta vivermos tempos tão sombrios como esses.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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