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Rebeca Andrade: ‘Biles me perguntou se continuaria após Paris. Disse que vai depender do meu corpo’

Em entrevista ao ‘Estadão’, ginasta revela conversa recente com a americana, fala sobre saúde mental e explica como o Brasil pode produzir novas Rebecas

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Por Ricardo Magatti
Atualização:
Foto: OLIVIER MATTHYS
Entrevista comRebeca Andradeginasta

Reverenciada pela americana Simone Biles, multicampeã na ginástica artística e reconhecida como uma das principais ginastas do mundo, Rebeca Andrade se lembrará com carinho de seu desempenho em 2023, ano em que conquistou cinco medalhas no Mundial da Antuérpia, na Bélgica, e quatro nos Jogos Pan-Americanos de Santiago, no Chile. A atleta de 24 anos acredita, porém, que 2024 pode ser ainda melhor em Paris, onde disputará os Jogos Olímpicos.

“Não sei se eu alcancei o ápice. Espero que não porque acho que a gente sempre pode evoluir, melhorar e fazer coisas diferentes. O pensamento é de crescer mais e mais”, diz ela em entrevista exclusiva ao Estadão. Rebeca lembra que não há garantia de que sairá de Paris com medalhas, como foi em Tóquio. O certo é que mostrará a habitual leveza, alegria e elegância na competição. “O que mais quero é sair da competição com a certeza de que não poderia ter feito nada de diferente”.

Cria de um projeto social, Rebeca andava duas horas a pé para treinar no Ginásio Bonifácio Cardoso, na Vila Tijuco, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Ela acredita que políticas públicas esportivas somadas ao incentivo dos familiares e ao esforço dos jovens atletas são fundamentais para que surjam novas Rebecas. “O jovem vai começar a aproveitar aquela oportunidade porque é algo que muda a vida dele. Se é o sonho dele, tem de acreditar que ele é capaz de realizá-lo”.

É com o pensamento de inspirar novas atletas e conquistar mais medalhas que trabalha todos os dias. As conquistas trouxeram fama e reconhecimento, mas não pressão, considera Rebeca, que compete sem pensar nas outras adversárias - mesmo que do outro lado esteja a amiga Simone Biles - e nas altas expectativas sobre ela. “Quero chegar na competição, com todo meu coração, para mostrar minha alegria, minha ginástica e brilhar da maneira que eu puder. Se eu fizer minha parte, sei que as medalhas virão”, afirma.

Rebeca em ação nas barras assimétricas durante o Pan de Santiago Foto: Martin Bernetti/AFP

Você disse que gosta mais de competir do que treinar, mas se preservou e ficou um longo período afastada das competições antes de voltar e empilhar conquistas no Mundial e no Pan. Esse resguardo te fez bem?

Apesar de amar competir, é muito importante eu respeitar o meu corpo. No planejamento com toda a equipe multidisciplinar, a gente faz um preparo para que eu aguente todas as competições no ano e meu treinador consegue avaliar o que é bom pra mim. Fico muito bem com esse resguardo e acho que consigo chegar mais preparada para as competições. Eu não preciso exigir tanto do meu corpo e quando tenho que usá-lo, ele está pronto para fazer o que eu preciso. É importante ter essa consciência e saber que os profissionais vão me respeitar e respeitar as decisões para que tenha um bom ano. Esse resguardo me faz bem.

Como foi o papo com a Simone Biles no Mundial de Ginástica na Antuérpia? Ela te reverenciou e fez o gesto de ‘passar a coroa’ a você.

Foi um momento íntimo, a gente não sabia que estava gravando. Foi uma coisa espontânea e carinhosa da parte dela comigo e com a Flávia (Saraiva). Ela perguntou se eu continuaria depois de Paris e eu disse que não sabia porque dependeria muito do meu corpo e das minhas vontades depois da Olimpíada. Eu perguntei o mesmo e ela falou que não, que ela vai encerrar a carreira. Em seguida, falei que o esporte precisa dela. Foi depois disso que ela fez aquele gesto de tirar a coroa e passar pra mim. Fiquei muito feliz porque senti que foi algo muito genuíno da parte dela, foi um gesto de carinho legal. A gente estava numa conversa bem tranquila, como sempre foi. A gente está sempre torcendo uma pela outra. Sabemos, não só eu e ela, a potência que a gente é dentro do nosso esporte e como podemos inspirar e incentivar outras pessoas. Temos uma relação de amizade, de torcer com todo o coração uma pela outra. Eu me sinto orgulhosa disso e acredito que ela deva se sentir igual. Torço assim para todas as atletas porque sei a dificuldade que é chegar num Pan-Americano, num Mundial, numa Olimpíada. Todas temos muito orgulho de estar ali competindo.

Depois de tudo o que você já ganhou, sente que alcançou sua melhor versão ou há margem para evoluir ainda mais física, técnica e mentalmente?

Acredito que a gente sempre pode evoluir. Estou muito feliz e fui muito feliz em todas as minhas versões, mas a cada ano eu dou uma mudada na parte física, mental e técnica. É legal poder acompanhar isso comigo e ver a diferença a cada ano que passa. Sou uma pessoa mais madura e consciente das coisas que fiz e vou fazer. Não sei se eu alcancei o ápice. Espero que não porque acho que a gente sempre pode evoluir, melhorar e fazer coisas diferentes. O pensamento é de crescer mais e mais.

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Podemos esperar mais apresentações históricas e medalhas de Rebeca Andrade na Olimpíada de Paris?

Podem esperar da Rebeca que ela vai dar 110% dela. Vou fazer o máximo e dar o meu melhor naquele momento, com a certeza de que eu vou ter feito tudo que podia. O que mais quero é sair da competição com a certeza de que não poderia ter feito nada de diferente, independentemente de erros ou acertos e do que as pessoas vão falar. Basta, pra mim, a certeza de que fiz o melhor. Espero orgulhar minha família, meu treinador, toda a equipe e o meu País. Entendo que o resultado é consequência. Preciso fazer a minha apresentação naquele dia e, se for pra ser, vai ser. Se tiver de voltar com medalha ou não, vou descobrir na hora, mas treino para que elas venham. Espero estar muito, mas muito feliz, e saudável.

Seu treinador, o Chico, disse que você compete consigo mesma, sem contar com a nota de uma ou de outra adversária. Esta estratégia te ajuda?

Ajuda bastante porque fico sempre focada apenas em mim. Se tiver focada no que a adversária está fazendo e no que eu preciso fazer pra passar por ela ou tirar mais nota, não vou conseguir tirar o máximo de mim. Quanto mais foco em mim eu tiver, melhor será meu resultado. Essa estratégia me ajuda porque minha cabeça, meu foco, vai estar ali comigo. E não uso isso só na ginástica, uso em todos momentos da minha vida, numa palestra, numa prova na faculdade. Estou sempre focada em mim e em como eu quero executar aquela coisa. Claro que às vezes as coisas não acontecem como a gente quer, mas quanto mais concentrada em mim estiver, melhor.

Rebeca se consolidou como melhor uma das melhores ginastas do mundo em 2023 Foto: Martin Bernetti/APF

Você encara desde cedo altas expectativas sobre si e chegará em Paris defendendo as medalhas que ganhou em Tóquio. Sente-se pressionada?

Não me sinto pressionada porque sei que não sou obrigada a voltar para o Brasil com medalhas. Não é uma exigência, mas, é uma vontade. Claro que treino pra isso, mas o resultado é consequência do meu trabalho. Quero chegar na competição, com todo meu coração, para mostrar minha alegria, minha ginástica e brilhar da melhor maneira que puder. Se eu fizer minha parte, sei que as medalhas virão. É sair daquela competição sabendo que fiz o máximo, esse é meu pensamento de sempre.

Você está cursando psicologia, certo? O debate sobre saúde mental na ginástica e no esporte evoluiu muito depois que a Simone Biles se afastou de quatro finais Jogos Olímpicos de Tóquio?

As pessoas entenderam que atletas não são robôs. A gente também tem problemas e dificuldades. Além da nossa vida pessoal, temos nossas dificuldades no esporte. A Simone é uma atleta grande e ela precisou passar por isso. Por ser muito grande, o mundo todo pesquisou mais e procurou saber mais sobre essa situação (cuidado com a saúde mental). Pra gente, é importante que as pessoas entendam como essa questão é tão delicada. Felizmente, ela conseguiu voltar e continua incrível, brilhando e inspirando tantos atletas, incluindo a mim. Foi bom que as pessoas tenham ido atrás disso e começaram a entender e a cuidar mais da cabeça e do corpo, tentando achar esse equilíbrio.

Rebeca exibe uma das quatro medalhas que ganhou no Pan de Santiago Foto: Martin Bernetti/AFP

E como lida mentalmente com a fama que veio com o sucesso no esporte?

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Sou tranquilo com relação à fama. Eu me vejo como a mesma Rebeca de sempre. Sempre mantive meu pé no chão, embora sonhe muito alto e queira conquistar mais coisas. As pessoas me reconhecem muito mais, tenho a oportunidade de fazer coisas diferentes, novos trabalhos. Estou aproveitando, tenho de curtir e crescer em outras áreas, sempre sem deixar atrapalhar meus treinamentos. Pra mim, é tranquilo. Olho pra trás e vejo que tudo que passei valeu a pena, que minha vida está sendo do jeito que eu gostaria, na verdade até melhor. É bom que esse reconhecimento seja por meio do meu trabalho.

A Rebeca é a mesma ou mudou muito desde que se tornou uma das melhores ginastas do mundo?

Eu entendo a posição que ocupo hoje e o que represento para o meu País com relação a várias questões, mas, no meu coração, continuo a mesma. Amadureci durante esses anos e cresci muito. Sinto orgulho do que conquistei. Recebo com muito orgulho e honra ser considerada uma das melhores ginastas do mundo. Fico feliz, mas fico mais feliz por continuar sendo a menina de sempre: a filha da Rosa, a atleta do Chico e para muitos a melhor ginasta do mundo. No meu coração, eu sou a mesma, só que mais madura.

Em um evento do COB, você disse que sozinha não vou mudar o mundo, mas pode fazer alguma diferença. Você considera que tem influenciado jovens positivamente, que sonham ou não em ser ginastas?

Com certeza. Não só eu, mas todos os atletas brasileiros, cada um em seu esporte. Às vezes, algo que você publica ou uma frase em uma entrevista faz a pessoa refletir e se sentir inspirada de alguma maneira. Eu sei o quão importante isso é porque a Daiane (dos Santos) foi essa figura pra mim, com a imagem dela, as palavras, a alegria e a potência. Espero continuar fazendo isso.

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Rebeca em ação nos Jogos Pan-Americanos de Santiago Foto: Martin Bernetti/AFP

Como o Brasil pode produzir e preparar novas Rebecas?

É difícil porque não é como se fosse uma fórmula. Poderíamos ter mais equipamentos públicos, ONGs, projetos sociais que levassem os esportes, não só a ginástica, para mais lugares para que as pessoas pudessem ter mais acesso. Às vezes, até tem um ponto bom de ginástica, mas a pessoa mora longe. Se é uma família com pouca condição, como era a minha, fica mais difícil para a criança, mesmo sendo talentosa, chegar àquele local para crescer naquele esporte. Criando equipamentos esportivos, fica mais fácil para as famílias incentivarem e apoiarem.

A ginástica foi a maior oportunidade da minha vida, aquele projeto social (em Guarulhos, oferecido pela Prefeitura) foi a maior oportunidade da minha vida, mas quando eu era pequena não entendia isso. Pra mim, no começo, estava em um parque de diversão fazendo algo de que gostava muito. Quem entendeu isso foi minha mãe, meus irmãos, minha tia e os profissionais que trabalharam comigo e viram que eu tinha algo a mais para me desenvolver e crescer na ginástica. A partir do momento em que criei esse entendimento, continuei trabalhando duro para que crescesse no esporte.

Não basta, às vezes, ter o equipamento esportivo. Aproveitar a oportunidade faz diferença. Se é uma criança muito nova, as famílias têm de entender isso também. Se já é um adolescente, o próprio profissional pode ajudá-lo e incentivá-lo. Automaticamente, o jovem vai começar a aproveitar aquela oportunidade porque é algo que muda a sua vida. Se é o sonho dele, tem de acreditar que ele é capaz de realizá-lo.

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