A surpresa Massa: como o ministro da Economia argentino venceu o 1º turno apesar da inflação de 140%

Quase todas as pesquisas apontavam vitória do libertário Javier Milei; entenda o que mudou e o que esperar para o 2º turno

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Por Jéssica Petrovna

Até aqui, a eleição na Argentina tem sido marcada por surpresas. Primeiro, o libertário Javier Milei desbancou os políticos tradicionais e venceu as primárias. Depois, o governista Sergio Massa virou o jogo e saiu na frente no primeiro turno.

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Os resultados contrariaram quase todas as pesquisas e deixaram o sentimento de que tudo pode acontecer. Afinal, como o ministro da Economia que vai entregar o país com a inflação anual na casa dos 140% foi de terceiro lugar para a liderança?

A pergunta tem respostas que se complementam. A fragmentação da direita enfrentou o voto consolidado do peronismo unido, o temor que o fenômeno Milei desperta em parte do eleitorado, o peso da máquina pública com a distribuição de benesses e subsídios, e a própria dinâmica criada pelas PASO, como são chamadas as primárias. O que a votação evidenciou é que elas são mais do que um termômetro, como se convencionou dizer, são parte do processo já que o resultado mexe com os ânimos do eleitorado.

Ministro da economia Sergio Massa fala com a imprensa internacional no dia seguinte a vitória no primeiro turno da eleição argentina Foto: Juan Mabromata / AFP

Analistas ouvidos pelo Estadão apontam que a vantagem de Milei pode ter encorajado o peronista mais frustrado, que se absteve das prévias, a votar agora que é para valer. Esse movimento favoreceu Sergio Massa que chegou a 36% dos votos no primeiro turno, com o peronismo unificado e o apoio de eleitores moderados, que tem ressalvas com o libertário.

Do outro lado, os votos da oposição se dividiram: Javier Milei manteve os 30% das PASO enquanto a representante da direita macrista Patricia Bullrich ficou com 23,83%.

Mais distante dos candidatos com chances reais de chegar à Casa Rosada, o governador de Córdoba, Juan Schiaretti, teve um bom desempenho nos debates e aumentou a fragmentação na direita. Ele cresceu de 3,8% para 6,78% entre as primárias e o primeiro turno e “roubou” votos dentro do campo de oposição.

Pesquisas vs. urnas

Na contramão das pesquisas argentinas, o instituto brasileiro Atlas Intel foi o único que apontou para esse cenário. Os outros levantamentos, de modo geral, indicavam que Milei sairia na frente para disputar o segundo turno com Massa. Algumas pesquisas argentinas até fugiram à regra ao indicar que Patricia Bullrich poderia manter o segundo lugar das prévias e deixar o peronismo de fora da decisão, mas todas concordavam que o libertário seria o vencedor do domingo.

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“Ele só poderia ter vencido Massa se houvesse um voto útil muito forte dos eleitores de Patricia Bullrich e nós não capturamos esse movimento”, explicou ao Estadão o CEO da Atlas, Andrei Roman. “O eleitor macrista é mais ideológico e a coalizão Juntos pela Mudança conseguiu segurar o voto em Bullrich. Não integralmente, é verdade, mas essa perda não foi suficiente para reverter a distância que Massa teria sobre Milei com a maior participação”.

Apesar do engajamento dos eleitores ter sido um dos mais baixos desde a redemocratização, o comparecimento foi de menos de 70% nas PASO para cerca de 75% no primeiro turno. E isso fez diferença.

“As primárias são a primeira oportunidade que o eleitor tem de punir os políticos. Quem não concorda com os rumos do governo pode simplesmente não ir votar para passar o recado”, contextualiza. “Agora, quando falamos da eleição, que vai de fato escolher o próximo presidente, o incentivo é muito maior. Especialmente, se considerarmos que a primária foi um choque a favor da direita. As primárias deram uma vantagem tão grande para Milei que isso mudou a dinâmica da eleição”, observa Roman.

O cientista político argentino Carlos de Angelis também acredita que a vantagem, por si só, já pode influenciar na virada. Ele afirma que, ao ver as pesquisas, os eleitores de Milei podem ter se sentido mais confortáveis diante da presumida liderança. Enquanto os mais favoráveis a Massa podem ter se sido motivados pelo risco da derrota.

O peso da máquina pública

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Agora, o peronista e o libertário vão para uma disputa de rejeições no segundo turno, marcado para 19 de novembro, em pouco menos de um mês. Os argentinos terão que escolher entre o outsider Javier Milei e o atual ministro da Economia, Sergio Massa.

Para ele, pesa ser o nome da continuidade, integrante do governo mais impopular em 20 anos. Ser o candidato do peronismo, no entanto, não traz só dificuldades: Massa tem o voto de um movimento que está consolidado na política argentina há oito décadas e conta com a máquina pública.

O candidato-ministro já anunciou uma série de medidas para aliviar a crise em meio às eleições, incluindo benefícios para trabalhadores independentes e aposentados. Mais recentemente, nos últimos dias antes do primeiro turno, uma campanha do Ministério dos Transportes alardeava que o preço das passagens passaria dos atuais 56 pesos (R$ 0,80) para 1.100 (R$ 15), caso Bullrich ou Milei fossem eleitos — uma resposta às promessas de corte dos subsídios.

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Para Carlos de Anegelis, as medidas de última hora podem até não convencer, mas falam diretamente para o eleitor que teve o poder de compra corroído pela inflação e tem medo de ficar desamparado. Nesse sentido, a máquina pública, como no caso das passagens, pode ajudar Sergio Massa a fazer frente com Javier Milei, que promete cortar subsídios, reduzir o Estado e substituir a educação pública por um sistema vouchers.

“O maior aliado de Sergio Massa não é o seu desempenho na economia, é Javier Milei”, reforça Andrei Roman ao apontar que a resiliência do peronista é, na verdade, uma reação dos eleitores contra o “extremismo” do libertário. “A única forma que Massa tem de reduzir a própria rejeição é apresentar Milei como mal maior. Não só na questão de costumes, mas também na economia”, avalia o CEO da Atlas Intel.

O ministro já começou esse movimento nas últimas semanas, quando culpou as falas do adversário pela instabilidade dos mercados. Por si só, as propostas radicais do outro lado, como a dolarização da economia e o fim do Banco Central não parecem ter convencido os argentinos fora da bolha de apoiadores do libertário, o que pode contribuir para estratégia peronista. A troca do peso pela moeda americana, por exemplo, só tem apoio de 28% dos entrevistados, segundo pesquisa Atlas.

Milei atingiu o teto? O que esperar para o segundo turno?

Nessa batalha de rejeições, vence quem convencer o eleitor de Patricia Bullrich de que o “mal maior” está do outro lado. Neste ponto, há divergências sobre quem tem mais chance de sucesso.

Andrei Roman acredita que o libertário está melhor posicionado para atrair os apoiadores do Juntos Pela Mudança — pelo menos neste momento. “Eles são muito coesos contra o kirchnerismo [vertente do peronismo representada pela vice-presidente Cristina Kirchner]. E é difícil pedir ao eleitor para votar no ministro da Economia no país onde a inflação anual é de 140%”.

Carlos de Angelis até concorda que o libertário, de fato, deve atrair parte dessa direita tradicional e superar essa marca dos 30% no segundo turno, mas pondera que as polêmicas de Javier Milei limitam a sua possibilidade de crescimento. É o chamado teto de votos.

“Milei é economista, se notabilizou ao falar de economia, mas cria problemas desnecessários, como criticar o papa. Às vésperas da eleição, um aliado ameaçou romper com a igreja católica”, lembra o cientista político. “Isso soa muito mal para o eleitorado moderado. As pessoas podem até não ir à missa todo domingo, mas estamos em um país de tradição católica e o papa é argentino. As figuras mais importantes da Argentina hoje são Lionel Messi e o papa Francisco”, conclui.

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De Angelis avalia que a rixa com o Papa, por exemplo, pode ser especialmente desconfortável para o eleitor mais velho e mais conservador, até então concentrado em torno de Bullrich. Somando essa a longa lista de controvérsias de Javier Milei, o cientista político diz que a “bola está no pé de Massa” para ficar na referência ao futebol. E justifica que o ministro, um político experiente, tem se mostrado mais habilidoso no jogo que o outsider.

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