Em discurso na ONU, Lula tropeça em crenças ideológicas e expõe dilemas internos; leia a análise

Ao falar da guerra na Ucrânia, petista ignorou esforços do Ocidente para apaziguar Vladimir Putin

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colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna

O discurso de Lula na Assembleia-Geral da ONU reflete os dilemas internos do presidente brasileiro sobre seus objetivos na política externa. O texto se divide claramente em dois. Na primeira parte, ele expôs os pressupostos de uma inserção produtiva do Brasil no mundo. Na segunda, regurgitou suas crenças ideológicas.

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Não se discute aqui o direito de Lula de expor suas crenças. Ele tem mandato democrático para isso. A análise objetiva da eficácia de um discurso parte da definição do que o governante de um país como o Brasil pode obter nessa tribuna que, embora esvaziada pela ausência de líderes importantes, ainda oferece grande visibilidade.

Ele pode conquistar prestígio, confiabilidade, respeito e espaços de convergência e afinidade com potenciais parceiros em iniciativas internacionais e em investimentos e cooperação bilateral. Foi isso que Lula fez na primeira parte de seu discurso, ao falar de Amazônia, energia renovável, desigualdade, discriminação contra mulheres, racismo, democracia e “nacionalismo primitivo”, que ele associou à “extrema direita”.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em discurso na Assembleia Geral da ONU, Nova York, 19 de setembro de 2023.  Foto: AP Foto/Seth Wenig

O governo Lula tem credenciais inquestionáveis em todos esses temas. O desmatamento da Amazônia foi reduzido em 48% nos primeiros oito meses deste ano, desempenho que repete o de seus dois primeiros mandatos. Igualmente, o Brasil é uma potência das fontes renováveis de energia, que são a chave, ao lado da preservação das florestas, para a contenção das mudanças climáticas.

Lula citou a aprovação de uma lei que equipara os salários de homens e mulheres nas mesmas funções. Da mesma forma, ele encarna a resistência da democracia contra uma tentativa de golpe militar no Brasil, que ganha ressonância com seu histórico de ativista sindical e político durante a ditadura nos anos 70.

Lula então começou a atacar a “extrema direita”, e foi aí que descambou para um rosário de crenças dogmáticas. Ele responsabilizou o “neoliberalismo” pelas desigualdades e perda de direitos dos trabalhadores. Alguém versado em economia poderia contra-argumentar que são a interferência e o tamanho excessivos do Estado que levam à injustiça social, protegendo grupos influentes e criando ineficiências e atraso.

Sem citar a Rússia, ele também se insurgiu contra as sanções como ferramenta de pressão contra um país que viola direitos humanos e desestabiliza a ordem internacional tentando redesenhar fronteiras. E repetiu sua narrativa poética sobre “a paz”, propondo a “abertura para o espaço de diálogo”.

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Lula parece ter desembarcado de outro planeta. Tudo o que o Ocidente fez com Vladimir Putin na última década, depois da invasão da Geórgia em 2008 e da Ucrânia em 2014, foi tentar apaziguá-lo, oferecer-lhe garantias e integrá-lo. A realização da Copa do Mundo na Rússia em 2018 e a construção do gasoduto Nord Stream 2 pela Alemanha, concluído em dezembro de 2021, para aumentar a dependência europeia do gás russo, são apenas dois exemplos materiais.

No campo diplomático, os esforços também foram inúmeros. Joe Biden se reuniu com Putin em Genebra em junho de 2021, depois de ele concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia a partir de abril daquele ano. Putin as retirou temporariamente, colhendo os frutos daquela deferência, para depois enviá-las novamente, em número muito maior, a partir de outubro também de 2021.

Os líderes europeus mais importantes visitaram Putin em Moscou ou conversaram com ele várias vezes pelo telefone, buscando maneiras de aplacar suas supostas susceptibilidades de segurança com a expansão da Otan na Europa Central e do Leste.

Putin havia decidido colonizar a Ucrânia, e nada pôde demovê-lo. Assim como aconteceu com Adolf Hitler no final dos anos 30, os gestos de apaziguamento dos europeus só serviram de incentivo para ele seguir adiante com seu expansionismo. Nada disso parece ser contemplado pela lógica lulista sobre o tema.

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A crítica de Lula ao embargo americano contra Cuba é compartilhada por praticamente todos os analistas e governantes. O então presidente Barack Obama, tendo Biden como vice, tentou pôr fim a essa estratégia, que só serve de pretexto para o regime justificar a completa desfuncionalidade de sua economia, que aliás parte de premissas não muito diferentes das que Lula abraça, embora a realidade brasileira o impeça de executar essa estatização maciça praticada na sofrida ilha. Dada a importância eleitoral da comunidade cubana da Flórida, democratas e republicanos não conseguem levar essa ideia adiante.

Nenhuma palavra sobre as atrocidades contra os direitos humanos dos cubanos, o que prejudica a imagem de democrata que Lula deseja imprimir.

Essa parte doutrinária do discurso culminou na defesa do “jornalista” Julian Assange. Derramar sobre a internet dados sem apuração, sem um exame dos possíveis riscos contra a segurança das pessoas expostas e do interesse público, não é jornalismo. O resultado de uma iniciativa tão irresponsável só poderia ser híbrido: revelou crimes cometidos por militares americanos, mas também expôs seres humanos.

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É de se questionar se, caso Assange tivesse feito isso com o Brasil ou algum regime aliado de Lula, ele o defenderia. Da mesma forma, se o Brasil fosse invadido por uma potência militarmente superior, Lula dispensaria sanções contra o inimigo e ajuda dos aliados, e entregaria os territórios ocupados, em nome da “paz”?

Essa parte do discurso é contraproducente, porque só ressoa sobre quem já pensa da mesma forma. E assim não contribui para abrir espaços de poder e de cooperação para o Brasil.

A divisão do discurso revela um conflito interno na estratégia de Lula. Pelo investimento de tempo e energia na arena internacional, sua elevação à condição de líder mundial é claramente a prioridade de Lula nesse terceiro mandato. O dilema é: como atingir isso? Com os ativos estratégicos que o Brasil oferece, ou com propaganda ideológica?

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