Comprar comida ou pagar o aluguel: a vida nos lixões argentinos no auge da inflação

Número de catadores de lixo em aterro na Grande Buenos Aires triplica desde o início da pandemia; indigência avança com crise econômica no país

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Por Amanda Cotrim

ESPECIAL PARA O ESTADÃO / BUENOS AIRES - Diante do aumento do custo de vida na Argentina, o salário de 70 mil pesos (R$ 1.200 reais) que Flávia Alves, de 40 anos, ganhava como supervisora de limpeza deixou de ser suficiente para sustentar a família. Pela primeira vez, ela precisou decidir entre pagar o aluguel ou dar de comer aos filhos.

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Mãe solo, deixou o apartamento de dois quartos, em San Telmo- bairro turístico da capital- e mudou-se com os dois filhos adolescentes para uma casa alugada, na favela do Sapinho, em Ezeiza, na região metropolitana de Buenos Aires. Flávia dorme com a filha no quarto e o filho dorme na cozinha. “O que a crise faz é expulsar os mais pobres para cada vez mais longe. Assim ninguém vê a pobreza. A gente fica escondido”, disse ela ao Estadão.

Nos últimos dois anos, muitas pessoas na mesma condição social de Flávia optaram por trabalhar no lixão a céu aberto da cidade de Lujan, o maior da Argentina, a 80 quilômetros da capital do país. Ali, o número de catadores cresceu de 63 para 206, segundo Pedro Vargas, Diretor de Resíduos Sólidos Urbanos do município. Para ele, o aumento - quase o triplo do período pré-pandemia -foi impulsionado pelo novo coronavírus e a perda de poder aquisitivo.

“O lixo, você sabe, é algo que não para de ser produzido, então sempre terá trabalho. O que estamos lutando é para que as condições melhorem, para que todos, cooperados ou não, tenham segurança”, ressaltou.

Argentinos trabalham em lixões em busca de material reciclável; Joana trabalha no lixão desde os 14 anos Foto: Amanda Cotrim/ Estadão Conteúdo

Flávia e mais um grupo de argentinos, que sofrem com a inflação e a especulação imobiliária, se reúnem toda a terça-feira na sede do Movimento de Ocupantes e Inquilinos (MOI), uma organização de moradores sem-teto portenha. Eles sonham conseguir melhores condições de moradia. Flávia quer voltar a morar na capital com a ajuda do projeto Casa Transitória, no qual parte do aluguel é pago pelo movimento.

“Antes eu levava 30 minutos até meu emprego, agora gasto duas horas. Meus filhos mudaram de escola e a nossa vida piorou”, comparou.

A vida nos lixões

A maioria das pessoas ouvidas pela reportagem que trabalha no lixão de Luján desde crianças foram levadas pelos pais, como acontece na maioria dos casos de trabalho infantil pelo mundo. Essa é a realidade de Pablo, 24 anos, que está no lixão desde os oito.

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Com a ajuda do seu cavalo, que transporta o material coletado, o jovem pode receber até 9 mil pesos (165 reais) em uma jornada de oito horas. “Com inflação ou sem inflação, a gente tem que comer”, concluiu o jovem de poucas palavras.

Pablo, que trabalha com lixo a vida inteira, prefere vender o material coletado para um galpão de reciclado. “Me pagam na hora. Ganho por dia. Prefiro assim”. Outra opção é vender para a Cooperativa Céu Aberto, que participa da revitalização do lixão e paga o dobro no quilo dos materiais, mas mensalmente e por transferência bancária. Muitos argentinos fogem dos pagamentos pelo banco, porque temem que o dinheiro desapareça com os impostos e a desvalorização do peso, explicou Vargas.

De acordo com os recicladores de Luján, os materiais mais vantajosos são os metais e as garrafas de plástico, já os de menor valor são os vidros e os papelões. No aterro visitado pela reportagem não foi registrado depósito de materiais orgânicos, como ocorre em aterros sanitários do Brasil.

Com inflação ou sem inflação, a gente tem que comer

Juan, catador de lixo argentino

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A maioria das pessoas no lixão de Luján são homens e jovens. Joana Henrique, 24, era a única mulher trabalhando no dia da visita da reportagem, em meados de outubro. Ela começou no lixão aos 14 anos, levada pelo pai, que segue trabalhando até hoje. Há dois anos, contudo, a jovem decidiu aderir a uma cooperativa,o que, em sua avaliação, fez a vida melhorar.

“Agora eu trabalho com roupas e equipamentos para ter mais segurança. Está muito melhor”. Perguntada sobre como a inflação impactou sua vida, a jovem não pensou muito. “A situação está difícil, não sei se mais do que antes. Porém temos que seguir em frente”, resumiu.

A maioria dos trabalhadores no lixão no lixão de Luján são homens e jovens Foto: Amanda Cotrim/ Estadão Conteúdo

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Retrato da fome

Sem as luvas usadas pela maioria dos recicladores, são os olhos de dona Claudia, 62, que vasculham algo no meio do lixão de Luján. Seu corpo magro e baixo, que caminha pra lá e pra cá, na companhia do filho. quer encontrar “mudas de tomate”, que, segundo ela, são para sua horta. Dona Claudia sempre foi faxineira, mas por causa de problemas de saúde, não pode trabalhar. Ela afirmou não receber aposentadoria e nem auxílio do governo, “a única isenção é na conta de gás”. Mora com dois filhos e agradece a Deus por não pagar aluguel.

“Não é sempre que a gente vem aqui, não. É a primeira vez. A gente nunca vem aqui”, explicou. Quando o filho se afastou, dona Claudia começou a conversar com mais desinibição. “Eu nem deveria estar aqui, sabe, porque eu tenho doença autoimune”, conta enquanto tosse, referindo-se às condições insalubres do lixão. “Perdi muito peso. Mas o que a gente vai fazer?”, contou emocionada.

A população em situação de indigência na Argentina aumentou 8,2% para 8,8% no primeiro semestre de 2022, o que representa 2,6 milhões de pessoas, segundo dados do INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censo). Os critérios de avaliação de indigência são pessoas quem não têm acesso às refeições proteicas e enérgicas básicas.

Ainda segundo a pesquisa, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza diminuiu para 36,5% em relação ao segundo semestre de 2021, quando a taxa esteve em 37,2%. Apesar do aumento da indigência, a taxa de pobreza vem diminuindo desde 2020, quando chegou a 42%.

O ponto mais frágil dessa realidade, contudo, é a pobreza entre crianças e adolescentes menores de 14 anos, os quais somam 5.5 milhões, cifra que representa quase 60% da população nessa faixa etária, de acordo com dados da ONU (Organizações das Nações Unidas). Atualmente, para uma família ser considerada de classe média, em Buenos Aires, os ingressos devem ser superiores a 160 mil pesos (3 mil reais), segundo dados do governo.

Flávia Alves, como muitos argentinos afetados pela crise, recorrem a movimentos sociais como o MOI, movimento por moradia, em Buenos Aires Foto: Amanda Cotrim/ Estadão

Empobrecimento da classe média

Carlos Kaganas, 71, morador de um bairro de classe média portenho, tinha uma vida confortável; era dono de uma empresa de representação comercial de marcas nacionais e internacionais, mas faliu em 2021. “Fiquei desesperado. Não tenho vergonha de dizer que cheguei a pedir trabalho para os meus clientes. Vi que ninguém ia me ajudar e decidi trabalhar como motorista de aplicativo”, contextualizou. O ex-empresário, que recebe 90 mil pesos de aposentadoria (1600 reais), transformou o carro de passeio, uma caminhonete chevrolet quatro por quatro, da época das vacas gordas, em seu veículo de trabalho.

Nas últimas semanas, no entanto, a situação piorou. Kaganas sofreu uma paralisia facial, fruto, segundo ele, de estresse pela crise econômica. “Mais gastos com remédios e médicos”, contou angustiado. Perguntado sobre quais as expectativas para o futuro, sua voz falhou: “Eu não tenho planos para o futuro. Pensei chegar nessa idade trabalhando, mas com tranquilidade. Agora não posso projetar nada”, lamentou.

Inflação, dólar e ajustes fiscais

Nas ruas de Buenos Aires é comum escutar que a população se acostumou a conviver com a inflação. Diagnóstico que provoca riso e desânimo, ao mesmo tempo. Alguns setores econômicos, como o turismo, cresceram em 2022.

No entanto, apesar da quantidade de pessoas ocupadas ter crescido para 12,6 milhões e a taxa de desemprego ser de 7%, grande parte dos postos de trabalho não são registrados, segundo os últimos dados do INDEC. A informalidade é uma realidade numa Argentina, e nesse setor da economia os salários não acompanham os avanços da inflação.

Enquanto isso, na capital, a cidade mais rica do país, cafeterias, bares, restaurantes estão lotados, com filas do lado de fora. O que explica essa contradição é a desigualdade social, de acordo com o pesquisador de Economia Política e Diretor da Sociedade Latino-americana e Caribenha de Economia, Júlio Gambina. “Os assalariados e desempregados são impactados com a alta dos preços, mas por outro lado, há uma classe social que têm renda, são proprietários de redes de hotéis, pessoas que recebem em moeda estrangeira, crescem com o consumo”, contextualizou.

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Para Gambina, a crise argentina se agravou com a dívida de US$ 45 bilhões adquirida junto ao FMI (Fundo Monetário Internacional) entre 2015 e 2019, na gestão de Mauricio Macri, que deixou o governo com uma taxa de 35,5% de pobreza e 8% de indigência. O acordo entre o governo de Alberto Fernandez e o Fundo, que estabeleceu o refinanciamento da dívida em parcelas trimestrais, foi alvo de críticas dentro da ala governista, produzindo mais instabilidade política em um país em crise. Enquanto isso, a população sofre os efeitos da maior inflação do país dos últimos 30 anos.

Diante dos constantes ciclos inflacionários nos últimos 30 anos, o país também sofre os efeitos da política cambial. Hoje, o dólar paralelo vale quase o dobro que o oficial. Para tentar manter as reservas no país e se tornar mais competitivo diante do dólar informal, o governo criou 15 cotações diferentes para a moeda americana e anunciou um pacote de medidas em agosto, com ajuste fiscal nos setores como energia, transporte, construção civil e até educação.

(* O câmbio utilizado na reportagem foi o do dólar informal)

Pablo trabalha com ajuda de uma carroça no maior lixão a céu aberto na Argentina Foto: Amanda Cotrim / Estadão Conteúdo
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