A pandemia do novo coronavírus, que já infectou mais de 1,8 milhão de pessoas e deixou 114 mil mortos, deve ser vista como um alerta para a comunidade internacional se unir, fortalecer ações multilaterais e enfrentar junta problemas globais, ao contrário do que se vê no momento, em que países têm decidido agir isoladamente contra a covid-19. A avaliação é de Elizabeth Sidiropoulos, diretora executiva do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais, centro de estudos regionais e globais baseado em Joanesburgo.
"O vírus não é racista, não se importa com gênero e não precisa de passaporte. Ele é um alerta para melhorarmos as nossas ferramentas para lutar coletivamente contra pandemia", afirmou. "Se um país falhar, vai prejudicar outros também". Com 26 anos nas áreas de política e relações internacionais, Sidiropoulos defende que os países usem esse momento para propor melhorias no funcionamento de instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras agências das Nações Unidas, incluindo a possibilidade de serem mais 'executivas'.
Abaixo, a entrevista completa.
Que mensagem o coronavírus deixa para a comunidade internacional em termos de cooperação e multilateralismo?
Vivemos há algum tempo a crise do multilateralismo. Alguns países têm virado as costas para ele, vendo-o como uma forma de redução de seus poderes como Estados independentes. O mais notável é os Estados Unidos de Donald Trump. Países ignorando ou criticando recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) agora são exemplos mais aparentes. Tivemos também situações de países negando o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas. Mas foi o multilateralismo o responsável por manter a paz no mundo durante a maior parte do tempo, criando regras e normas que foram sendo melhoradas, ainda que haja falhas.
Por que há esse momento de crítica e essas crises?
Muitas das instituições internacionais foram estabelecidas há mais de 70 anos, no pós-guerra. Elas precisam de mudanças. Mas o mundo político não fez isso, nem mesmo quando tínhamos governos que acreditavam no multilateralismo, como o de Barack Obama. As instituições sempre estiveram lá à nossa disposição. Não é culpa delas. É culpa dos membros individuais. São eles que se sentem às mesas, que podem falar e votar. É responsabilidade deles.
Organizações como a OMS só têm o poder que os Estados-membros permitem que elas tenham. A OMS tem seus regulamentos internacionais que cada país precisa expressar se vai ou não obedecer, mas há limitações.
As sedes regionais precisam ser fortalecidas. É preciso dizer que houve melhoras na OMS, ela não é a mesma que enfrentou o surto de ebola há alguns anos. Mas é preciso incrementar o seu financiamento para fortalecer os sistemas de saúde públicos, por um exemplo. O vírus não é racista, não se importa com gênero e não precisa de passaporte. Ele é um alerta para melhorarmos as nossas ferramentas para lutar coletivamente contra pandemia. Se um país falhar, vai prejudicar outros também.
Esse momento que vivemos de uma pandemia global é uma oportunidade nesse sentido?
Esse é o momento de os países serem mais proativos, especialmente os africanos, e oferecerem soluções práticas e viáveis para reformar o sistema internacional e organizar coalizões para atingir esse objetivo. Não adianta só ficar reclamando, é preciso colocar as ideias na mesa, especialmente no contexto dessa emergência global de saúde. Que mecanismos podemos introduzir para melhorar a habilidade dessas instituições de tomarem decisões, de olharmos com mais proximidade para a saúde pública global? É uma oportunidade política natural.
Qual o saldo da covid-19 nesse ponto?
A covid-19 mostrou que é necessário ter cooperação. Cooperação entre regiões, entre países, entre organizações. Levantar muros não vai adiantar. Desafios transnacionais não podem ser combatidos com a criação muros. É preciso ação coletiva e respeito à soberania dos países. É essa a mensagem poderosa do coronavírus. As instituições precisam ter mais possibilidade de agir e mais recursos.
Deveriam ter poderes de execução mais fortes. Na China, se a OMS tivesse agido mais cedo, teria ajudado um pouco mais. Outro exemplo é na área de não-proliferação de armas nucleares. Esse sistema opera a partir da boa vontade, mas se você assina um tratado, precisa ter obrigações. Se algum país não quer deixar entrar os inspetores, como às vezes acontece, isso é um problema.
Com essas reformas, poderíamos lutar melhor contra problemas como pobreza, desigualdade, discriminação e mudanças climáticas.
Quais as dificuldades de fazer isso?
Reformar instituições é algo altamente político. Mas é importante conseguir colocar as ideias na mesa e explorar a capacidade de criar coalizões entre países. Uma coalizão do Sul Global (países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos do Hemisfério Sul), por exemplo. E também é importante olhar para a União Europeia em alguns aspectos porque é um interlocutor muito poderoso dentro dessas instituições.
Criar uma frente ampla e tentar implementar reformas que deem um pouco mais de 'dentes' para as entidades nos permitiria avançar. Para os países mais poderosos como China, Estados Unidos, é possível operar por outras regras, mas e para a maioria dos outros?
Se as regras globais se enfraquecem, os países menores e menos poderosos têm mais riscos e estão mais vulneráveis.
Os países da África serão os mais atingidos, principalmente em termos de trabalhos humanitários e manutenção da paz. Por isso o multilateralismo é muito importante. E é preciso engajar outros atores em termos de reformas. A China, por exemplo, sempre apoiou o Sul Global.
Nesse ponto, como vê a coordenação entre os países africanos para lutar contra a pandemia?
A mobilização dos países em torno da covid-19 foi boa, houve medidas proativas e os governos estão avançando. O vírus também demorou um pouco mais para chegar aqui, tivemos mais tempo e sorte. Hoje, todos os países estão tomando alguma medida contra o coronavírus. Houve encontros de ministros da Saúde, de ministros da Economia, presidentes de Bancos Centrais, para debater os custos econômicos e sociais do vírus. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África tem tido um papel importante.
A União Africana fez reuniões virtuais e levou suas demandas ao encontro do G-20. Tem havido muita coordenação e é uma resposta regional colaborativa, com troca de informações sobre desenvolvimento de vacinas, lições aprendidas em outras nações e intercâmbio dos melhores métodos para identificar quem teve contato com o vírus, por exemplo. Os mecanismos regionais têm ajudado nessas instâncias, inclusive para prover financiamentos para os países com infraestrutura mais deficitária.