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Opinião | A inexplicável admiração pelo ditador turco na política brasileira

O que torna essa admiração inexplicável ao tiranete da Turquia é o fato de que seu governo, além de autoritário e violador contumaz dos direitos humanos, é profundo fator de instabilidade regional e global

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Foto do author Filipe Figueiredo

De maneira quase inexplicável, o governo turco de Recep Erdogan possui admiradores por todo o espectro político. No Brasil, especialmente em grupos que se consideram à esquerda, por sua suposta resistência e contraponto à Israel. O que torna essa admiração inexplicável ao tiranete da Turquia é o fato de que seu governo, além de autoritário e violador contumaz dos direitos humanos, é profundo fator de instabilidade regional e global.

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Parte da direita, especialmente europeia, vê em Erdogan alguém disposto a fazer “o serviço sujo”. Seu governo impede milhões de refugiados árabes de tentarem entrar em território da União Europeia. Como parte da Otan, a Turquia supostamente age contra os interesses russos e iranianos em teatros de operação que não são prioritários para os europeus, como na Líbia e na Síria. Junto disso, a admiração pelo “homem forte”.

Na esquerda brasileira, Erdogan foi celebrado por suas posições frente à Israel e de apoio aos palestinos. Todas essas posições, entretanto, são apenas discurso, da boca pra fora, propaganda que convence aos incautos. Erdogan chegou ao ponto de anunciar uma ruptura de relações com Israel. Tal “ruptura”, entretanto, pela primeira vez não inclui o fechamento de uma embaixada.

Lula com o presidente da Turquia, Recep Erdogan, em reunião bilateral no G-20. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Principalmente, é via Turquia que a maior parte do petróleo consumido por Israel chega ao país. Israel é comprador de hidrocarbonetos da ditadura do Azerbaijão, aliada da Turquia e tratada, na prática, como parceiro júnior em uma aliança sob o slogan “Uma Nação com Dois Estados”. O oleoduto liga o Azerbaijão à Geórgia e, dali, para terminais portuários turcos em Ceyhan, no Mediterrâneo, onde são exportados para Israel.

As declarações de Erdogan e seus encontros com lideranças do Hamas são mera propaganda para seu público interno, conservador e islamista, em contraponto aos movimentos políticos seculares da Turquia. Essa propaganda, entretanto, é consumida sem senso crítico pelo Brasil. Se o tiranete turco quisesse de fato atingir os interesses israelenses, fecharia o oleoduto. O que significaria perda de dinheiro e tensão com o aliado Azerbaijão, e Erdogan não quer isso.

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O pilar islamista não se resume à política interna turca, sendo parte essencial se sua política externa agressiva e causadora de instabilidade. Erdogan se vangloriou de ter feito parte da limpeza étnica dos armênios cristãos de Nagorno-Karabakh, chamados pejorativamente por ele de “sobras da espada”, ou seja, uma população que “escapou” das conversões à força durante os Califados.

A Turquia também tem presença militar na Líbia e no Chifre da África, e está expandindo sua influência no mercado bélico e também no Atlântico Sul. Nos últimos dias, principalmente, apoia a ofensiva do Tahrir al-Sham na Síria, grupo islamista que já foi ligado à al-Qaeda. O grupo, com apoio militar, logístico e de treinamento turco, tomou Aleppo, a segunda maior cidade síria, recentemente.

O apoio aos “rebeldes” sírios cumpre vários objetivos da agenda de Erdogan. Primeiro, enfraquece o regime de Bashar al-Assad, ditador sírio, também responsável por sistemáticas violações de direitos humanos. Em uma leitura maniqueísta, alguns podem achar que, por serem oposição a Assad, o Tahrir al-Sham seria preferível. Na verdade, é uma acirrada dispusta de quem é mais detestável.

Segundo, Erdogan quer expandir a luta contra os curdos, agora com a eleição de Donald Trump, que já abandonou os curdos antes, na crise que resultou na renúncia do então secretário de Defesa, Jim Mattis. Terceiro, quer aproveitar a janela em que seus principais rivais na Síria estão enfraquecidos, como o Irã e o Hezbollah, ou focados em outros teatros de operação, como os russos na Ucrânia.

Ou seja, a ofensiva dos extremistas apoiados pela Turquia na Síria é consequência direta das ações israelenses contra Hezbollah e Irã. Isso não quer dizer, entretanto, que Israel deseje a queda de Assad, pois sabe que os substitutos são ainda piores. Finalmente, Erdogan quer agir para impedir a normalização em curso de Assad com outros países árabes, com o ditador sírio recebido novamente na Liga Árabe.

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Vídeos terríveis já aparecem nas redes sociais, mostrando a violência extremista consequente das ações turcas e seu aliado Abu Mohammad al-Julani, líder do Tahrir al-Sham, que passou por recente banho de imagem, mas ainda é classificado como terrorista dos mais procurados pelo governo dos EUA. Considerando todo esse breve retrospecto, é chocante que Erdogan possua admiradores, ainda mais no Brasil.

Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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