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Guerra na prateleira: Como a invasão russa da Ucrânia afetou a produção de vinhos na Itália

Vinícola especializada em biodinâmicos usa selo para denunciar que o ‘caos geopolítico’ provocado pelo confronto mudou a aparência de seus rótulos

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Foto do author Felipe Frazão
Por Felipe Frazão
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL A ROMA - Na Europa, a guerra chegou à prateleira dos supermercados. Um ano e meio depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, produções locais tradicionais como a dos vinhos ainda sofrem com os efeitos diretos do confronto. E não só nos volumes de consumo e vendas. A produção dos vinhos mais artesanais, destinada ao consumo interno na União Europeia e exportação, foi prejudicada, bem como a apresentação estética dos vinhos na gôndola.

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É o caso da vinícola familiar Fazenda Foradori, um produtor local da Itália. Desde o fim do ano passado, eles passaram a entregar um de seus vinhos de forma diferente e com um aviso peculiar. A etiqueta colada sobre o rótulo não dá margem a dúvidas: “Aparência modificada temporariamente por causa do caos geopolítico”.

O vinho segue o mesmo, garante a Foradori. A garrafa guarda um Teroldego Rotaliano, de cepa única, produzido nos campos do Norte da Itália próximos da fronteira com a Áustria e a Suíça. Trata-se de um tinto típico dos vinhedos das Dolomitas, a icônica cadeia de montanhas dos alpes italianos. Os primeiros registros de cultivo da casta Teroldego na região datam do século XIV. A safra de 2021, envasada no ano passado, foi a primeira a ser afetada pelo confronto na Ucrânia. Virou uma edição “limitada” da guerra.

Vinho da guerra: garrafa do Foradori Teroldego, em supermercado de Roma, com estética alterada por causa do conflito na Ucrânia Foto: Felipe Frazão

Um rótulo diferente

A vinícola chegou a publicar um aviso dizendo que a mudança durariam pelos próximos meses, com destaque para a frase do selo. “O recipiente, por outro lado, sofre uma modificação neste estoque porque nos últimos meses foi impossível encontrar vidro verde”, disse a Foradori. “O fechamento de seis fundições na Ucrânia, importante na distribuição de material semi-processado na Itália, resultou necessariamente numa variação estética temporária desse tipo.”

O rótulo e a cor da garrafa mudaram. Antes verdes, passaram a ser marrons. O código de barras, impresso em papel, foi colado no verso com fita adesiva. A rolha passou a ficar à mostra. Não há mais acabamento com lacre vermelho metalizado, em geral a base de alumínio, ou cera no gargalo. Sem essa cápsula, a rolha de cortiça natural fica mais exposta à deterioração precoce e ao contato com impurezas, insetos e roedores.

Diferentes pesquisas de mercado e consumo já identificaram que a aparência e o rótulo de um vinho influenciam diretamente a compra. No ano passado, um estudo do Vivino, aplicativo de classificação colaborativa dos vinhos a partir da leitura dos rótulos, mostrou que essas questões são determinantes para a decisão de compra de 85% das pessoas.

São alterações forçadas de ordem estética e de apresentação do produto, mas que ocultam a alta nos custos e a escassez de matéria-prima na cadeia de suprimentos do mercado do vinho italiano. Mostram também até que ponto vão as consequências da guerra no Leste Europeu.

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O Estadão encontrou um exemplar do Foradori Teroldego safra 2021 na gôndola de um supermercado de bairro, em Roma, a cinco minutos a pé da Cidade do Vaticano. Estava em “promoção”, ao custo de 19,90 euros (cerca de R$ 106), destacado como vinho biodinâmico, um tipo cada vez mais valorizado no mercado europeu e que evita ao máximo intervenções no terroir local.

O conceito do cultivo é holístico, envolve o respeito às características do clima e do solo, segue as fases da lua para poda e colheita manual, bem como a incidência do sol nos vinhedos. A ideia de interferência mínima dispensa uso de agrotóxicos e conservantes - admitem somente insumos naturais. Os vinhedos costumam ser associados a outros cultivos, como girassóis, e à criação de animais como ovelhas e abelhas.

Vinho da guerra: garrafa do Foradori Teroldego, em supermercado de Roma, com estética alterada por causa do conflito na Ucrânia Foto: Felipe Frazão

‘Uma guerra estúpida’

Emilio Zierock é responsável por gerenciar a produção da Foradori, fundada em 1901, ao lado dos irmãos. Eles são a quarta geração da família. O produtor diz que o problema todo começou muito rápido, depois que fundições de vidro na Ucrânia fecharam as portas por causa do conflito. Segundo ele, o sua empresa pagava 40 centavos de euro por garrafa antes de a guerra começar, e logo nos primeiros meses pós-invasão russa o preço quase dobrou, chegando a 75 centavos de euro cada casco. Algo similar ocorreu com o fornecedor das cápsulas.

O jeito, afirma Zierock, foi adaptar ao que existia de disponível. A Azienda Agricola Foradori viu os seus revendedores italianos da região de Trentino, que por sua vez compravam as garrafas de fábricas na Ucrânia, destinarem sua produção totalmente para atender às vinícolas gigantes da Itália. Esses produtores usam garrafas mais padronizadas, e a Foradori encomendava garrafas customizadas, com cor verde especial, clara.

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“Somos uma empresa muito pequena nos alpes, mas a guerra afetou até a gente. Não pelas exportações, que caíram, obviamente, mas muito mais na cadeia de suprimentos. Trabalhamos num microcosmo, mas ainda assim fomos afetados pela disputa geopolítica. A Ucrânia tem grandes fábricas de garrafas de vidro que abastecem o mercado europeu, e por causa da guerra elas fecharam as portas. Até na Rússia tem fábricas de garrafas de vidro, mas por razões óbvias não estamos importando deles agora”, explica Emilio Zierock. “Todo o mercado de vidro na Europa está sob estresse. Está muito difícil obter vidro e, claro, pela crise energética que vivemos há um ano, o vidro ficou muito caro. Eles pararam de produzir nossas garrafas pela crise energética e pela falta de demanda. Tivemos que trocar por essas garrafas marrons estranhas.”

O maior produtor de vinhos do mundo, a vinícola italiana Gallo, distribui cerca de 1,2 bilhão de garrafas por ano, enquanto a Foradori é capaz de colocar 180 mil no mercado por ano - sendo 50 mil do Foradori Teroldego. Em vez de produzir as garrafas customizadas de pequenos clientes, os fornecedores passaram eles padronizaram para ampliar os lucros e atender as maiores vinícolas. Há anos a Itália lidera os rankings de produção mundial.

A vinícola fica em Mezzolombardo, uma comuna na província de Trento. Eles cultivam quatro castas em 30 hectares. A principal é a Teroldego. Neste ano, ainda há falta de matéria-prima, e a empresa não teve ainda condições de normalizar sua produção. Emilio acredita que isso deva ocorrer apenas em 2024, quando devem envasar safra deste ano.

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“Ainda está complicado obter as garrafas. Estou planejando comprá-las agora com um ano de antecedência. Antes eu adquiria com algumas semanas antes de envasar. É uma loucura que um pequeno produtor como a gente sofra as consequências da guerra, que causou problemas com alto custo de energia e um enorme problema na produção de vidro”, afirma o proprietário da Foradori.

“Também não temos cápsulas nos vinhos por causa dessa guerra estúpida. Nosso fornecedor de polilaminados não conseguiu entregar por causa de restrição relacionados à Ucrânia.. Eles também compravam de lá a matéria-prima de metais para fabricar. O impacto foi muito rápido. Em um ou dois meses começou a faltar matéria-prima. As coisas estavam complicadas na pandemia, e pioraram na guerra.”

Escassez de vidro por causa da guerra

A guerra na Ucrânia aumentou a demanda por vidro na Europa, um isolante térmico e acústico, mas que também permite a passagem de luz natural. Os bombardeios russos destruíram primeiro janelas e portas, que precisam ser reconstruídas. Isso provocou uma corrida pelo vidro, em que pese a Ucrânia abrigar algumas das maiores fábricas do mundo. Fundições foram obrigadas a fechar as portas, e os trabalhadores fugiram dos ataques russos.

Uma delas foi a suíça Vetropack, que fornece para países da Europa Ocidental, entre eles a Itália. Em março de 2022, a empresa fechou uma fundição que fabricava vidro desde 1912, perto de Kiev. A instalação já estava com a fabricação suspensa e 600 funcionários parados, por causa da invasão russa. Mas acabou sendo alvo de um ataque militar. O prejuízo declarado pela empresa no balanço financeiro de 2022 foi de U$ 35 milhões.

A planta em Gostomel tinha três fornos e oito linhas de montagem. Um foi severamente danificado pelos russos, não sendo possível recuperá-lo. Após mais de um ano e meio parada, a fábrica começou a ser reativada no fim de maio, informou a empresa, com a recontratação de 139 funcionários. O problema de parar uma fábrica como essa é que grandes quantidades de vidro derretido endurecem dentro dos fornos, danificando-os. Uma das primeiras providências é tentar retirar o vidro solidificado nas instalações. A limpeza e os reparos custaram U$ 9 milhões.

Fábrica de vidro da Vetropack atingida por ataque russo na Ucrânia, antes e depois dos trabalhos de limpeza e reparos Foto: Vetropack Group

Por outro lado, a produção do vidro demanda muita energia para processamento da areia, calcário e outras matérias-primas, e os custos em geral aumentaram por causa das restrições a fontes de energia provenientes da Rússia, sobretudo do gás. A indústria foi afetada ainda pelo aumento do preço da matéria-prima para produção do vidro.

Além disso, nos últimos anos as fábricas estavam voltadas para produção de ampolas de vacina contra a covid-19. O vidro também vinha sendo mais usado no dia a dia dos europeus, num esforço para reduzir e eliminar o plástico.

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Com a guerra, além da necessidade de repor portas e janelas, garrafas vazias se transformaram em coquetéis molotov na Ucrânia.

O cenário foi agravado, segundo vinicultores, porque a Itália não adotou nenhuma política específica para reaproveitamento das garrafas. A França, eles dizem, vetou a exportação das garrafas de vidro usadas - o “casco” - com objetivo de minimizar os impactos da guerra internamente. O reuso tem sido também a solução ambientalmente incentivada no país vizinho.

Um dos fornos de fusão de vidro da Vetropack em Gostomel na Ucrânia, que foi limpo manualmente para retomar a produção de embalagens Foto: Vetropack Group

Principal instituição do setor no país, a Federvini (Federação Italiana de Produtores Industriais, Exportadores e Importadores de Vinhos, Bebidas Espirituosas, Licores, Xaropes, Vinagres e similares) confirmou as dificuldades criadas pela guerra na Ucrânia.

O Observatório Econômico da Federnivi, em parceria com a consultoria Nomisma, acrescentou ao Estadão que os problemas enfrentados pelos pequenos produtores se agravaram, porque, tão logo saíram os primeiros alertadas da iminente invasão russa, os maiores players do mercado começaram a estocar vidro, antecipando-se ao aumento de preços futuro.

“O problema afetou particularmente os pequenos produtores que não conseguiram absorver esse efeito da guerra, não tendo em muitos casos capacidade de acumular grandes quantidades de estoque. Em todo o caso, o preço do vidro continua elevado, com importantes repercussões na nossa produção nacional”, informou entidade, a pedido do jornal.

Queda de consumo na Rússia e Ucrânia

Estudos mencionados no site oficial da Federvini falam em mudanças na dinâmica de consumo do mercado externo. A guerra afetou exportações para Ucrânia e Rússia, principalmente em 2022. Especialistas citados pela federação relatam queda de vendas de determinados tipos de vinhos mais caros e elaborados - os espumantes DOP colapsaram, com redução à metade.

Isso está diretamente associado ao fato de a Rússia ser um grande consumidor e à situações internas como perda de poder de compra, inflação e hábitos de consumo no país de Vladimir Putin. Relatam, porém, que os vinhos italianos desempenharam bem em outros mercados, como França, os Estados Unidos e Canadá, o que promoveu certa compensação. As restrições de acesso ao mercado russo foram absorvidas por outros destinos. Além disso, os perfil de consumo russo mudou para vinhos de custo mais baixo em vez dos de alta gama.

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Segundo a Federvini, as exportações para a Rússia no incio de 2023 se recuperaram em relação a 2022. O valor neste ano foi de 34 milhões de euros em negócios, um salto de 10 milhões de euros, quando considerados os 24 milhões de euros exportados a Moscou no mesmo período do ano passado. No entanto, novos pacotes de sanções adotados pela União Europeia podem afetar esse cenário nos próximos meses.

As notícias sobre a guerra exibidas em TVs nas estações de trem e metrô provocam sensações diferentes e mais impactantes quando se está do outro lado do Atlântico, a somente 2 horas e meia, em voo, de Kiev. É pisar num país diretamente envolvido no confronto.

Vinhos artesanais prejudicados

Não só a Foradori, mas outras vinícolas focadas em vinhos biodinâmicos e naturais - um argumento de venda cada vez mais valorizado globalmente - e de produção menor, mas voltada ao mercado interno e externo, passaram por dificuldades similares.

Nas províncias de Trento e Bolzona, a guerra impactou também as vinícolas Pranzegg e a Alois Lageder, que também ficam no Trentino-Alto Ádige, uma região de fronteira sob influência de culturas e idiomas de origem latina e germânica. As montanhas dolomitas são patrimônio mundial declarado pela Unesco.

Clemens Lageder é da sexta geração de uma família dedicada ao vinho. Ele lidera a Alois Lageder, tradicional vinícola fundada em 1823. Sua empresa tem a maior área - 55 hectares - voltada para o cultivo de vinhos biodinâmicos italianos, em Magré, na Estrada do Vinho. Lageder evita, no entanto, usar a expressão “afetado” para sua produção.

“Claro que as coisas ficaram um pouco mais caras e talvez escassas, mas eu não diria que fui afetado, até em respeito ao povo ucraniano”, disse ao Estadão. Clemens, no entanto, acha que a indústria do vinho não foi tão afetada assim na Itália.

À frente da Pranzegg, uma pequena vinícola de 4 hectares íngremes em Bolzano, Martin Gojer relata que costumava usar garrafas do tipo Borgonha, mais bojudas, que ficaram 100% mais caras. A vinícola não conseguiu garrafas brancas no inverno deste ano, para o espumante natural Pét-nat. As verdes, que usaram como alternativa, estavam 150% mais caras do que no ano anterior.

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Martin Gojer conta que seu revendedor de garrafas prevê uma normalização lenta do fornecimento. Os preços, porém, não baixaram ainda. “Espero que essa guerra terrível, cujo menor dos impactos é no mercado de garrafas, impulsione o desenvolvimento e fabricação de alternativas ao vidro. Nós da Pranzegg implementamos continuamente garrafas mais leves nos últimos quatro anos, para reduzir a pegada de carbono”, afirmou ao Estadão.

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