Hamas teve apoio e recebeu armas e treinamento do Irã, dizem autoridades e analistas

Segundo especialistas militares e autoridades dos EUA e de Israel, ataque do grupo terrorista islâmico tem ‘pedigree de Teerã’

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Por Joby Warrick , Ellen Nakashima, e Souad Mekhennet

Os terroristas palestinos por trás do ataque surpresa do fim de semana contra Israel começaram a planejar o atentado há pelo menos um ano, com o apoio fundamental de aliados iranianos que forneceram treinamento militar e ajuda logística, bem como dezenas de milhões de dólares em armas, disseram na segunda-feira atuais e antigos funcionários da inteligência do Ocidente e do Oriente Médio.

Embora o papel exato do Irã no atentado de sábado não tenha ficado claro, o ataque refletiu a ambição de Teerã, que já dura anos, de cercar Israel com legiões de combatentes paramilitares armados com sistemas de armas cada vez mais sofisticados, capazes de atacar profundamente o Estado judeu.

Palestinos comemoram ao lado de um tanque israelense destruído na cerca da Faixa de Gaza Foto: Yousef Masoud/AP

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O Hamas, a organização militante palestina com sede em Gaza que liderou o ataque, historicamente tem mantido um grau de independência de Teerã em comparação com os verdadeiros grupos representantes iranianos, como o Hezbollah, com sede no Líbano.

No entanto, nos últimos anos, o Hamas se beneficiou de grandes injeções de dinheiro iraniano, bem como de ajuda técnica para a fabricação de foguetes e drones com sistemas de orientação avançados, além de treinamento em táticas militares – alguns dos quais ocorreram em campos fora de Gaza.

Autoridades americanas e israelenses disseram que, até o momento, não têm provas concretas de que o Irã tenha autorizado ou coordenado diretamente o ataque que matou mais de 900 israelenses e feriu milhares. No entanto, funcionários atuais e antigos da inteligência disseram que o ataque tinha características de apoio iraniano e observaram que Teerã se vangloria publicamente das enormes somas em ajuda militar fornecidas ao Hamas nos últimos anos.

“Se você treina pessoas para usar armas, espera-se que elas acabem usando”, disse um funcionário da inteligência ocidental que pediu anonimato. O funcionário e um segundo analista ocidental com acesso a informações confidenciais disseram que a análise realizada após o ataque apontava para muitos meses de preparação por parte do Hamas, com início em meados de 2022.

Em entrevistas, ao menos 12 analistas de inteligência e especialistas militares expressaram espanto com a furtividade e a sofisticação do atentado do Hamas, que envolveu ataques coordenados através da fronteira israelense por centenas de homens armados que viajavam por terra, mar e ar – incluindo parapentes motorizados. A ofensiva terrestre foi acompanhada por enxames de foguetes e drones que começaram a cruzar a fronteira no início do sábado, atingindo alvos com um grau de precisão nunca visto em ataques anteriores do Hamas.

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Embora o grupo palestino tenha uma milícia capaz e linhas de montagem próprias para foguetes e drones, um ataque da escala de sábado teria sido extremamente desafiador sem uma ajuda externa considerável, disseram os analistas.

“A quantidade de treinamento, logística, comunicação, pessoal e armas necessárias deixa uma pegada evidente”, disse Marc Polymeropoulos, ex-oficial sênior de operações da CIA que atuou em funções de contraterrorismo no Oriente Médio. “Isso sugere o envolvimento iraniano, dada a complexidade do ataque, e destaca a falha colossal da inteligência de Israel.” O uso de parapentes – que lembra um ataque cinematográfico de 1987 da Frente Popular para a Libertação da Palestina em Israel que matou vários soldados – “certamente exigiu treinamento fora de Gaza”, disse Polymeropoulos.

Jonathan Finer, assessor adjunto de segurança nacional da Casa Branca, disse em uma entrevista à CBS News: “O que posso dizer sem sombra de dúvida é que o Irã é amplamente cúmplice desses ataques. O Irã tem sido o principal apoiador do Hamas há décadas. O Irã lhes forneceu armas. Forneceu treinamento. Forneceu apoio financeiro. Portanto, em termos de ampla cumplicidade, está muito claro o papel do Irã”.

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Teerã negou um papel direto no ataque de sábado, ao mesmo tempo em que elogiou os militantes do Hamas que o executaram. “Não estamos envolvidos na resposta da Palestina, pois ela é tomada exclusivamente pela própria Palestina”, disse a missão de Teerã nas Nações Unidas em um comunicado divulgado na segunda-feira. Mas outras autoridades iranianas comemoraram publicamente o ataque, destacando sua estreita relação com o Hamas.

“Vocês realmente deixaram a Ummah islâmica feliz com essa operação inovadora e vitoriosa”, disse a agência de notícias oficial do Irã, IRNA, citando o presidente Ebrahim Raisi, usando a palavra árabe para a comunidade muçulmana em geral.

O líder do Hamas, Ismail Haniyeh, reconheceu em uma entrevista no ano passado que seu grupo recebeu US$ 70 milhões em assistência militar do Irã. De acordo com um relatório do Departamento de Estado de 2020, o Irã fornece cerca de US$ 100 milhões anualmente a grupos terroristas palestinos, incluindo o Hamas, a Jihad Islâmica Palestina e a Frente Popular para a Libertação da Palestina – Comando Geral.

Autoridades de inteligência confirmaram que o Irã forneceu ajuda técnica ao Hamas na fabricação dos mais de 4.000 foguetes e drones armados lançados contra Israel desde sábado. Pelo menos alguns militantes do Hamas também passaram por treinamento em táticas militares avançadas, inclusive em campos libaneses com assessores técnicos da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã e do Hezbollah, disseram as autoridades.

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Os terroristas do Hamas que receberam treinamento provavelmente eram oficiais de elite que transmitiram suas habilidades a outros combatentes dentro da própria Gaza, disse Michael Knights, especialista em grupos de milícias apoiados pelo Irã e fundador do blog Militia Spotlight.

“É uma abordagem do tipo ‘treinar o treinador’”, disse Knights. “Não é preciso fazer muito para treinar alguém para ser capaz de operar um sistema de drones, que já não é algo complicado.” Por outro lado, disse ele, a capacidade usar arsenal e táticas combinadas exibida durante o ataque de sábado “foi claramente praticada e cuidadosamente planejada em algum lugar. Um grande número de posições fortificadas caiu em ataques sofisticados de armas combinadas. E isso não acontece por acaso”.

Durante anos, a principal milícia aliada do Irã em Gaza foi um grupo diferente: a Jihad Islâmica Palestina. Mas, aos poucos, Teerã começou a reforçar seus laços com os líderes do Hamas e a aumentar seu apoio, disse Ray Takeyh, membro sênior de Estudos do Oriente Médio do Conselho de Relações Exteriores. “Esse relacionamento se aprofundou nos últimos anos”, disse Takeyh. “É financeiro, político e, em algum nível, operacional.”

Michael Eisenstadt, diretor do Programa de Estudos Militares e de Segurança do Washington Institute, disse que o relacionamento com o Irã se desenvolveu como resultado do processo de paz de Oslo no início da década de 1990, quando Teerã estava procurando maneiras de atrapalhar os esforços para forjar um acordo de paz entre os palestinos e Israel. Foi nessa época que o Irã forneceu pela primeira vez o conhecimento para os cintos de explosivos usados pelos homens-bomba palestinos.

As campanhas de atentados suicidas do Hamas e da Jihad Islâmica tiveram um “impacto significativo” no processo de paz, disse ele. O Hamas lançou seu primeiro foguete caseiro, o Qassam, em 2001, durante a Segunda Intifada. Mas ele era muito rudimentar, usando canos e uma mistura de combustível caseiro derivada de açúcar e outros componentes comuns.

“Ao longo dos anos, o Irã prestou muita assistência ao Hamas em termos de capacidade de produção de foguetes”, disse Eisenstadt. “A arma característica dos representantes do Irã são os foguetes e, cada vez mais, os mísseis. Vemos isso em toda parte – no Iraque, no Hamas, nos Houthis, no Hezbollah. Isso é muito inspirado pelo exemplo e pela orientação do Irã”.

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Mas outros analistas enfatizaram o histórico do Hamas como um agente independente, capaz de realizar operações terroristas sofisticadas sem instrução ou supervisão externa.

“Essa é uma guerra entre o Hamas e Israel, na qual o Irã está apoiando o Hamas, mas o Hamas é quem dá as ordens”, disse Bruce Riedel, ex-especialista em contraterrorismo da CIA e agora membro sênior da Brookings Institution.

Embora não haja “nenhuma dúvida” de que o Hamas coordena com o Irã, a relativa independência do grupo o torna um alvo mais difícil para as agências de inteligência israelenses e ocidentais, acrescentou Riedel.

“Eles não fornecem informações rotineiramente a conselheiros iranianos que, em seguida, as transmitem para casa. Não há conselheiros em Gaza”, disse Riedel, que observou que é difícil para os combatentes comuns do Hamas saírem de Gaza para treinamento no exterior.

Os foguetes e mísseis lançados pelo Hamas podem ter sido produzidos localmente, mas possuem um “pedigree iraniano”, segundo analistas e especialistas em armas.

Anos atrás, os foguetes iranianos eram contrabandeados do Egito para Gaza através do Sinai. Mas depois que o presidente Abdel Fatah El-Sisi assumiu o poder, o Egito fechou muitos dos túneis que ligavam o Sinai a Gaza, e o Irã começou a ajudar o Hamas a desenvolver uma capacidade interna.

“É melhor dar a seus representantes a capacidade de produzir esse material por conta própria do que ter que se preocupar com dutos logísticos que podem ser interditados e cortados”, disse Eisenstadt.

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Alguns dos foguetes produzidos pela Jihad Islâmica Palestina e pelo Hamas têm termos em farsi em seus projetos, disse Eisenstadt. E um drone usado pelo Hamas, chamado Shahab, é baseado no Ababil-2 iraniano, uma munição de localização que, segundo Eisenstadt, é quase idêntica a um modelo usado no Iêmen pelos Houthis, outro aliado iraniano.

Embora as Forças de Defesa de Israel tenham dito que não há evidências de envolvimento operacional iraniano no ataque, as táticas usadas estão muito “de acordo com o conceito de operações do Irã”, para criar uma “encruzilhada de fogo” – lançando um ataque a cada poucos meses ou anos para “minar o moral israelense, minar a resiliência israelense” com o objetivo de “minar a viabilidade de longo prazo de Israel”, disse Eisenstadt.

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