Homem que atirou em Reagan fracassa na carreira de músico fora da cadeia

John Hinckley Jr. não está mais sob vigilância de autoridades judiciais; mas percebeu que sua liberdade tem limites

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Por Mark Guarino
Atualização:

THE WASHINGTON POST - No início de junho, John Hinckley Jr. foi liberado, após 41 anos, da vigilância das cortes e do sistema de saúde mental. Depois de restrições gradualmente mais brandas ao longo dos anos, agora ele não tem mais de notificar o tribunal quando viaja, pode acessar redes sociais e caixas de e-mail e pode usar seu nome comercialmente. “Um grande dia para mim”, afirmou ele.

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Mas Hinckley, que atirou no ex-presidente Ronald Reagan em 1981, veio a perceber que sua liberdade é relativa. A notoriedade que o acompanhou por décadas o está impedindo de fazer o que mais deseja: tocar música para uma plateia.

No mesmo dia que passou a vigorar a ordem de suspensão de sua supervisão judicial, Hinckley soube que uma casa de shows no Brooklyn, citando preocupações de segurança em relação a ameaças online direcionadas ao estabelecimento, havia cancelado um concerto marcado para julho cuja lotação estava esgotada, no qual ele esperava apresentar 17 canções de autoria própria.

John Hinckley Jr. chega ao Tribunal Distrital E. Barrett Prettyman dos EUA em Washington, em 19 de novembro de 2003 Foto: Brendan Smialowski/Reuters

O evento concretizaria um antigo sonho do americano de 67 anos que começou a tocar violão quando era adolescente. Uma série de shows — também em Chicago; Hamden, Connecticut; e Williamsburg, Virgínia — ocorreria, mas as outras apresentações também foram canceladas abruptamente, por razões similares. “Estou com esse show na cabeça há vários meses, planejando e ensaiando”, afirmou ele.

A liberdade de John Hinckley Jr. não tem precedente. Outros que tentaram assassinar presidentes tiveram destinos muito diferentes.

Se ele fosse qualquer outro atirador — considerado inocente por incapacidade mental e posteriormente deixado de ser considerado um perigo para si mesmo e para as outras pessoas — Hinckley poderia ter deixado o sistema penitenciário anos atrás e se apresentado em qualquer casa noturna da cidade de Nova York.

Mas suas vítimas incluíram um presidente dos EUA no exercício da função, um secretário de imprensa, um policial de Washington e um agente do Serviço Secreto. Muita gente não quer vê-lo desfrutando dos benefícios de uma vida sem supervisão judicial.

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Riscos

A Fundação Reagan se opôs à suspensão das restrições sobre Hinckley e sua tentativa de iniciar carreira na música, afirmando em um comunicado que ele “aparentemente busca lucrar com sua infâmia”. Em um artigo publicado no Washington Post em 2021, Patti Davis, uma das filhas de Reagan, também protestou contra sua liberdade.

“Não acredito que John Hinckley sinta remorso”, escreveu ela. “Narcisistas raramente sentem.”

O Market Hotel, localizado em Bushwick, no Brooklyn, publicou um comunicado nas redes sociais afirmando que “não valia colocar em jogo a segurança de nossas vulneráveis comunidades (…) em um clima perigosamente radicalizado e reacionário”.

“Foi uma baita decepção”, afirmou Hinckley. Quinhentos ingressos tinham sido vendidos. A casa de eventos afirmou que estava sendo inundada com “algumas ameaças muito reais e cada vez piores de ódio”.

Acompanhada pelo advogado Barry Levine (E), Jo Ann Hinckley, mãe de John Hinckley Jr., chega para uma audiência para decidir sobre a saúde mental de seu filho em Washington  Foto: Brendan Smialowski/Reuters - 18/11/2003

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Até emergir no Twitter, em outubro de 2021, Hinckley era bem conhecido principalmente por pessoas que se recordam dos anos de Reagan e daquele dia em março de 1981, quando ele disparou seis tiros contra o presidente em frente a um hotel em Washington.

Além de Reagan, os disparos atingiram o secretário de imprensa James Brady, um policial de Washington e um agente do Serviço Secreto. Brady sofreu uma lesão cerebral e morreu em decorrência dos ferimentos em 2014.

Um júri considerou Hinckley inocente por incapacidade mental, e ele foi sentenciado a viver em um hospital psiquiátrico em Washington por mais de três décadas.

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Contudo, a partir de 2003, a Justiça começou a permitir que ele visitasse a família, e em 2016 ele recebeu aprovação para viver fora da instituição, em Williamsburg, Virgínia, localidade para a qual seus pais se mudaram para poder ficar por perto.

As decisões foram acompanhadas de restrições, como dar às autoridades acesso às suas contas de e-mail e seus dispositivos eletrônicos e notificá-las se ele planejasse viajar além de uma distância determinada a partir de sua casa.

Jodie Foster

Enquanto Hinckley trabalhava para controlar sua doença mental privadamente, sua imagem pública continuou a associá-lo a 1981, quando ele atirou no ex-presidente e nas pessoas que o acompanhavam em razão de uma esquema alucinado para impressionar a atriz Jodie Foster.

Um musical de 1990 de Stephen Sondheim, Assassins (Assassinos), fez dele personagem juntamente com Lee Harvey Oswald, que assassinou a tiros o presidente John F. Kennedy, e John Wilkes Booth, que matou com um disparo o presidente Abraham Lincoln. Teorias conspiratórias a respeito da família de Hinckley permeiam cantos obscuros da internet. Diferentes bandas punk fizeram dele tema de canções. A banda pop Devo até musicou um de seus poemas.

Hinckley afirma que não assiste TV e não se interessa no que as pessoas dizem dele. “Eu não leio essas coisas”, afirmou ele. “Nem quero saber disso.”

Mas depois de uma década em silêncio, Hinckley tem algo a dizer. “Não sinto mais a depressão e o isolamento que sentia naquela época”, afirmou ele. “Era isso o que me motivava 41 anos atrás. Mas não tenho nenhuma depressão há muitos, muitos anos. Se tento pensar em como eu era em 1981, não consigo. Onde eu estava com minha cabeça? Era como se eu fosse outra pessoa. Certamente sinto remorso pelo que aconteceu, que está expresso em uma das minhas canções.”

Presidente Ronald Reagan e sua mulher, Nancy, em recuperação após ser submetido a uma cirurgia para tratar um câncer Foto: Washington Post photo by Ray Lustig

As quase 40 músicas que Hinckley postou no YouTube, no Spotify e em outras plataformas de streaming falam de sua jornada em termos bem simples. “Eu estava perdido no mundo / o suficiente para te fazer chorar de pena”, canta ele em uma canção que lamenta a dificuldade de viver “o tempo todo com medo de jamais ser livre”.

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“A noite é escura / mas sempre há o alvorecer”, canta ele em outra canção. “A noite é escura / mas o medo logo acaba.”

A música deixa Hinckley em paz. “Dá uma sensação boa escrever uma boa canção”, afirmou ele. Mas seu propósito maior, disse ele, é se comunicar com as pessoas. “Escrevo canções pacíficas. O clima no país agora está tão ruim. Tento escrever músicas que deem alento às pessoas”, afirmou ele.

Em vídeo, Hinckley define uma imagem austera: ele sempre se apresenta sozinho, tocando violão diante de um fundo neutro. Suas canções têm construções simples e dedilhados. Atraindo 30 mil seguidores no YouTube e mais de 15 mil ouvintes mensalmente no Spotify, sua música se conectou com uma audiência que ele não esperava: fãs da Geração Z, que nem tinham nascido em 1981.

‘Esquisitos e obscuros EUA’

“Eles não têm o preconceito que seus pais e avós têm contra mim. Eles têm mente aberta”, afirmou Hinckley. Desde que emergiu no Twitter, ele foi inundado com mensagens de jovens, incluindo alguns músicos, que o encorajaram afirmando que se reconhecem na luta dele contra a doença mental.

Bunny Gaubert, de 25 anos, entrou em contato com Hinckley via Twitter e acabou criando o website dele e organizando sua apresentação em Chicago, que a casa de eventos posteriormente cancelou. Ela afirmou que sua geração está mais disposta a perdoar Hinckley porque a infâmia dele é café pequeno em comparação às novas realidades de crescer “nos esquisitos e obscuros EUA” do pós-11 de Setembro.

“Nosso mundo se choca menos” do que o mundo de 1981, afirmou Gaubert. Enquanto pessoa que sofreu de doença mental durante a adolescência, ela afirmou que consegue sentir empatia em relação à jornada de Hinckley para a sanidade. “Depois de ser repudiado e julgado daquela maneira, ele poderia ter escolhido a raiva e o ressentimento, mas em vez disso escolheu fazer canções de paz”, afirmou ela.

Matt Paneth, produtor independente de shows em Nova York que marcou a apresentação de Hinckley no Brooklyn, caracterizou-o como uma pessoa simplesmente buscando recuperar o tempo perdido.

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“Ele não conseguiu viver a vida e está expressando uma mensagem de positividade em sua música. Há algo genuíno e honesto a respeito disso”, afirmou Paneth, de 31 anos, cuja produtora, Scenic Presents, é especializada em shows punk. Uma canção de Hinckley, Never Ending Quest (Busca sem fim), afirmou ele, é especialmente comovente: “Ele diz que está no caminho para conseguir viver sua vida. É uma mensagem linda e honesta.”

John Hinckley Jr. chega em sua nova casa em Kingsmill, em Williamsburg, Virgínia  Foto: Washington Post photo by Jahi Chikwendiu

Após viver na casa da mãe até ela morrer, no meio do ano passado, Hinckley se mudou para um apartamento de um quarto em Williamsburg, onde vive com um gato amarelo chamado Theo. Ele toca violão, conversa com os vizinhos do prédio e mantém uma coleção de álbuns de vinil que iniciou na adolescência — Bob Dylan, Beatles, The Who e The Kinks são seus favoritos. “Estou certo que existem novas bandas que me agradariam o ouvido, mas sempre volto para a música dos anos 60″, afirmou ele.

Os amigos de Hinckley são seus vizinhos ou as pessoas que trabalham em um mercado de antiguidades próximo de seu prédio, onde ele já teve uma barraquinha, mas agora só terceiriza aos comerciantes do local a venda de coisas que encontra na rua. Doze anos atrás, quando estava hospitalizado, ele começou a pintar representações abstratas de homens, mulheres e, às vezes, gatos. As obras são vendidas minutos depois que ele as oferece no eBay.

“Não sou um grande pintor”, admite ele. “Não sinto a pintura como sinto a música.” Além de seu cheque mensal da Previdência Social, as pinturas fornecem uma renda regular.

Williamsburg é a zona de conforto de Hinckley. “As pessoas são gentis comigo”, afirmou ele. Todas as terças-feiras, Hinckley frequenta um pequeno grupo de terapia e vai ao psiquiatra uma vez ao mês em uma cidade próxima. “Mas meu foco é principalmente compor novas canções”, afirmou ele.

Após três shows serem cancelados nas últimas semanas, Hinckley passou a se produzir por conta própria e alugou o teatro da Biblioteca Regional de Williamsburg para se apresentar em novembro. Mas este mês, três horas depois dele anunciar a data do show, esse local também cancelou a apresentação dele, porque “a biblioteca recebeu imediatamente comentários hostis via chat e e-mail” e ficou evidente que “o show ia representar claramente uma grande perturbação ao funcionamento da biblioteca”, afirmou por e-mail a porta-voz da biblioteca, Desiree Parker.

John Hinckley Jr., que atirou no presidente Ronald Reagan em 1981, tentou iniciar uma carreira na música, mas não está conseguindo fazer shows ao vivo  Foto: Washington Post photo by Matt McClain

Apesar de algumas pessoas considerarem a presença de Hinckley controvertida, especialistas em saúde e até a promotora de Justiça Kacie Weston, que não se objetou à suspensão da vigilância sobre ele em 15 de junho, caracterizam-no como alguém que “demonstrou o sucesso que pode decorrer de um sistema de saúde mental abrangente”. Uma corte considerou que Hinckley “não representa perigo para si ou para os outros”.

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Phillip Resnick, especialista em psiquiatria forense da Faculdade de Medicina da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, afirmou que a hospitalização de Hinckley foi excepcionalmente longa para alguém considerado inocente em razão de incapacidade mental. “O tempo médio de hospitalização é de três a quatro anos. Ele esteve hospitalizado por um período extraordinariamente longo em razão da infâmia de seu crime, em vez de base nas evidências”, afirmou ele.

Hinckley disse que está esperando as coisas se acalmarem, motivado unicamente por seu “amor à música e tentando manter uma atitude positiva”. Hinckley teve uma boa notícia no mês passado, ao saber que a Asbestos Records, um selo independente de ska e punk rock, lançará um álbum de vinil com suas canções ainda este ano, de acordo com Matt Flood, presidente da gravadora. Uma vez que as pessoas escutarem suas músicas, afirmou Hinckley, elas entenderão que a única coisa que ele quer é “expressar uma vibe positiva”.

Uma dessas canções diz tudo: “Você só conhece o que eu era / você não conhece um lado diferente de mim”, canta ele. “O passado acabou / encontrei um dia novo e mais feliz.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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