Em poucos dias, as relações tradicionalmente fortes entre o país do cedro e o reino wahabita deterioraram-se a tal ponto que ameaçam chegar ao ponto de ruptura.
Tudo começou no dia 19, quando a monarquia saudita subitamente suspendeu a ajuda e doações no valor total de US$ 4 bilhões que deveriam financiar a compra de material francês destinado ao Exército e às forças de segurança interna libanesas. A medida espetacular justificava-se pelas posições julgadas pouco amistosas, e até mesmo hostis, adotadas dias antes pelo Líbano, com a realização de duas conferências – uma pan-arábica, no Cairo, e a outra pan-islâmica, em Jeddah – convocadas para condenar recentes ataques de manifestantes contra as representações diplomáticas sauditas no Irã.
Nas duas conferências, o ministro libanês das Relações Exteriores, Gebran Bassil, limitou-se a condenar verbalmente essas agressões – invocando a política de neutralidade do Líbano diante dos conflitos regionais – e absteve-se de aderir às resoluções finais. Adotadas pelas outras delegações presentes, elas denunciavam em termos vigorosos as ingerências criminosas do Irã e do seu instrumento libanês, o Hezbollah, nos assuntos dos países árabes. A iniciativa do ministro causou uma viva polêmica no próprio Líbano.
Bassil é, na realidade, o genro do general Michel Aoun, o influente aliado cristão do Hezbollah. Assim, de modo algum surpreendeu o fato de ele ter sido repreendido por ter agido como ministro do Exterior não do Líbano, mas do Irã e da milícia xiita.
Apesar dos gestos de apaziguamento do governo de Beirute e das numerosas delegações de personalidades políticas e econômicas que foram à embaixada saudita para manifestar solidariedade, diversas medidas de represália foram tomadas nos dias seguintes.
Imitado pelas outras monarquias petrolíferas do Golfo, o reino proibiu aos seus cidadãos de irem ao Líbano e decidiu adotar ma série de sanções contra homens de negócios e empresas acusadas de ter ligações com o Hezbollah.
Na quarta-feira, a Arábia Saudita e seus aliados regionais – Catar, Kuwait, Emirados Árabes, Bahrein e Omã – decidiram classificar o Hezbollah como organização terrorista. Na mesma noite, todo o mundo árabe seguiu o exemplo do reino qualificando por sua vez o Hezbollah como terrorista – e isso veio no decorrer de uma reunião de ministros árabes do Interior realizada em Túnis. Lá, também, o representante do Líbano não pôde fazer outra coisa senão cortar o abacaxi em dois: condenou a política agressiva do Irã e do Hezbollah contra vários países árabes, mas, explicou, sua preocupação com a estabilidade interna proibia absolutamente o Líbano de provocar de maneira abrupta o Hezbollah, solidamente representado no governo e na Assembleia.
Uma condenação explícita acarretaria o desmembramento do gabinete, único órgão executivo que subsiste no Líbano, porque o Parlamento, há cerca de dois anos, se encontra impossibilitado de escolher um presidente da República. Pior ainda, levando em conta as fortes tensões entre sunitas e xiitas, seria possível prever choques armados entre elementos de ambas as partes.
Igualmente aterradora para os libaneses seria a perspectiva de medidas de represália sauditas ainda mais rigorosas. A mais catastrófica seria uma onda de expulsões que afetariam centenas de milhares de expatriados libaneses que vivem e trabalham no Golfo – e cujas remessas de recursos para as famílias residentes no Líbano constituem um dos pilares econômicos do país.
Perguntamo-nos que interesse pode ter a Arábia Saudita em penalizar o Líbano como um todo, com o pretexto de castigar o Hezbollah. O bloqueio das remessas de armas, na realidade enfraqueceria a única força que poderia fazer frente ao Hezbollah armado até os dentes.
Num país em que o establishment político está dividido em partes bastante iguais, as sanções parecem mais contraproducentes principalmente por não pouparem os próprios protegidos sauditas. Tudo está acontecendo como se o reino recriminasse seus aliados, principalmente seu líder, o primeiro-ministro Saad Hariri, por falta de determinação e escassa eficiência diante dos apetites cada vez maiores do Hezbollah. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* É COLUNISTA DO 'ESTADO' E JORNALISTA RADICADO EM BEIRUTE