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Liberais ficam impacientes com as decisões de política externa de Biden

O recente elogio de Jared Kushner à política de Biden em relação ao Irã espalhou frustração entre democratas, que pedem uma atuação mais corajosa no exterior

Por Michael Crowley
Atualização:

WASHINGTON - Esta semana, autoridades do governo Joe Biden se espantaram com elogios de uma fonte improvável: Jared Kushner.

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Em um artigo opinativo publicado no Wall Street Journal, Kushner, que é genro do ex-presidente Donald Trump e foi seu conselheiro para o Oriente Médio, afirmou que o presidente Joe Biden "fez a coisa certa" e conseguiu "frustrar o blefe do Irã" ao se recusar a fazer novas concessões para dissuadir o país persa a participar de negociações para a retomada do acordo nuclear abandonado pelo governo Trump.

Talvez as intenções de Kushner fossem boas, mas seu selo de aprovação constituiu um problema para Biden, pois incendiou aliados liberais já desapontados com a falta de avanço na diplomacia nuclear do presidente em relação ao Irã.

O presidente americano, Joe Biden, e a primeira-dama Jill Biden chegam à Casa Branca. Foto: REUTERS/Erin Scott

"A Casa Branca de Biden deveria interpretar isso como um grande alerta, indicando que talvez não estejam fazendo a coisa certa, já que Jared Kushner está encontrando uma forma de elogiar essas ações", disse Benjamin Rhodes, conselheiro-assistente de segurança nacional do ex-presidente Barack Obama e esteve envolvido na elaboração do acordo nuclear de 2015, na edição de quarta feira do podcast "Pod Save the World".

O Irã é apenas um dos vários temas de política externa que estão frustrando a base política de Biden dois meses após o presidente assumir. Apesar de Biden ter deliciado os apoiadores com várias ações imediatas - entre elas, o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris para o clima e a retirada de apoio à guerra liderada pela Arábia Saudita no Iêmen -, o presidente causou frustrações ao ordenar um ataque aéreo na Síria e ao se recusar a aplicar sanções contra o príncipe herdeiro do trono saudita, Mohammed bin Salman, em razão do brutal assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista dissidente e morador dos EUA.

Na quarta feira, Biden alimentou o descontentamento ao admitir, em entrevista à ABC News, que será "difícil" atender ao prazo de 1.º de maio, estabelecido pelo governo Trump, para a retirada das tropas americanas do Afeganistão, uma das principais prioridades de liberais ansiosos pelo fim do que qualificam como as guerras "eternas" dos EUA.

E mais conflitos podem estar a caminho em relação aos gastos militares, pois Biden deverá propor poucos cortes - ou nenhum - ao orçamento do Pentágono, que inchou sob o governo Trump. Cinquenta deputados federais do Partido Democrata enviaram uma carta para Biden esta semana pedindo uma redução "significativa" na despesa.

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Após ver Biden conseguir a aprovação do transformador pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão, os progressistas estão se perguntando por que a política externa de Biden parece tão convencional. Ele se preocupam com a possibilidade de Biden e sua equipe de autoridades de segurança nacional majoritariamente centrista frustrarem o desejo da ala liberal por uma nova política externa americana, que se valha muito menos do poderio militar, apazigue tensões com rivais como Irã e China e coloque mais pressão em aliados como Arábia Saudita e Israel - correndo o risco de esfriar as relações com esses países.

Deputada Nancy Pelosi (E) e senador Chuck Schumer: democratas celebram aprovação do plano de estímulo financeiro sem um único voto do Partido Republicano Foto: Jim Lo Scalzo/EFE

As autoridades do governo Biden rejeitam essas críticas, qualificando-as como injustas e prematuras.

Um graduado funcionário do governo afirmou que a era Trump criou um apetite pouco realista por ações imediatas em relação a temas complexos e que os objetivos de longo prazo das políticas de Biden deixarão satisfeitos muitos liberais frustrados. A fonte falou sob condição de anonimato, para discutir considerações políticas não oficiais.

A fonte de muitas queixas é o Oriente Médio, que funcionários do governo Biden esperam tirar dos holofotes conforme voltam sua atenção para a China. A principal é a decisão de Biden de não retomar unilateralmente o acordo nuclear com o Irã revertendo duras sanções impostas por Trump ao país quando o ex-presidente abandonou o acordo em 2018.

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O Irã diz que não vai negociar nem retardar o avanço de seu programa nuclear para atender aos limites do acordo enquanto Biden não agir.

Defensores do acordo original, entre eles funcionários do governo Obama que ajudaram a definir seus termos, dizem que o tempo perdido só facilita o fortalecimento da oposição política doméstica, dando margem para que acontecimentos naquela região perigosa desencadeiem um conflito mais intenso.

Eles também se queixam do fato de Biden manter as sanções aplicadas por Trump ao Irã quando deixou o acordo, ainda que o Irã tenha respeitado os termos estabelecidos até então. Aprovando a situação, Kushner se referiu a isso como uma “mão de cartas fortes” que Biden teria herdado do antecessor.

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"O governo Biden comprou do governo Trump a análise segundo a qual essas sanções conferem aos EUA um poder de influência, mesmo que elas não tenham conferido a Trump qualquer tipo de influência no Irã", disse Joseph Cirincione, veterano especialista do controle de armamentos que foi ativamente consultado por funcionários do governo Obama no estabelecimento do acordo nuclear.

A perspectiva de uma negociação nuclear ficou ainda mais complicada depois que Biden realizou um ataque aéreo contra milícias defendidas pelo Irã na Síria no dia 25 de fevereiro, uma resposta aos ataques com foguetes de milícias contras forças americanas no Iraque, país vizinho. Mesmo sendo um ataque limitado, a operação tirou dos trilhos a diplomacia nuclear nascente e trouxe o risco de uma escalada, disse Cirincione.

O ataque também irritou liberais determinados a encerrar o que descrevem como guerra "eterna" ou "infinita" dos EUA - as campanhas militares e de combate ao terrorismo no Oriente Médio e em parte da África que teve início após os ataques de 11 de setembro. O senador independente Bernie Sanders, de Vermont, disse que o ataque "coloca nosso país em posição de levar adiante a guerra eterna em vez de encerrá-la", e questionou a justificativa jurídica da operação (a Casa Branca diz defender medidas no congresso que tentam rechaçar e substituir leis da era Bush ampliando a autoridade presidencial para o uso da força).

A frustração é agravada ainda entre os liberais pela impressão de que a equipe de segurança nacional de Biden está repleta de centristas que defenderam intervenções militares americanas no passado, incluindo o secretário de estado, Antony Blinken, e o conselheiro de segurança nacional do presidente, Jake Sullivan.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, durante o encontro com diplomatas chineses no Alasca. Foto: Frederic J. Brown/Pool via AP

Críticos da política inicial de Biden para o Oriente Médio concentraram suas atenções em Brett McGurk, coordenador do conselho de segurança nacional para a região. McGurk entrou no governo como assessor na Casa Branca do ex-presidente George W. Bush, permanecendo durante os governos de Obama e Trump. Tem boas relações com lideranças na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos - países ricos em petróleo que defensores dos direitos humanos consideram repressores, e vistos pelos liberais como uma influência indesejada na política americana.

E com Blinken e Sullivan se reunindo na quinta e na sexta com diplomatas chineses do alto escalão, alguns liberais também desprezam a posição aguerrida da equipe de Biden em relação a Pequim, alertando novamente que ela traz um tom de confronto típico de Trump, destacando que a cooperação chinesa é essencial para combater a mudança climática. Entre outras coisas, Biden não revogou as pesadas tarifas que Trump aplicou às importações chinesas.

"Fiquei incrivelmente desapontada, mas não chocada, ao ver que o governo Biden se acomodou na postura de confronto defendida pelo establishment da política externa", disse Kate Kizer, diretora de políticas do grupo anti-intervencionista Win Without War. "A resposta não é aprofundar a militarização e a demonização. Temos que fazer investimentos profundos na diplomacia e fortalecer a resiliência doméstica."

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Alguns democratas defendem uma ampla infusão diplomática. Na terça feira, um grupo de senadores e congressistas democratas pediu um aumento de US$ 12 bilhões para o orçamento dos EUA para assuntos internacionais com o objetivo de financiar a diplomacia. E um número ainda maior de congressistas democratas está pedindo simultaneamente um corte no orçamento do Pentágono, que inchou 20% durante o governo Trump, chegando a US$ 740 bilhões.

"Temos muitas necessidades domésticas a atender", disse a deputada democrata Barbara Lee, da Califórnia.

Barbara também está entre aqueles cansados da prorrogação das datas-limite para a retirada do Afeganistão como a indicada por Biden na quarta feira.

"Temos que trazer nossos soldados para casa", disse ela, "e temos que fazer isso rapidamente"./ TRADUÇÃO AUGUSTO CALIL