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Thomas Friedman: Joe Biden pode salvar a democracia de Israel?

O Estado de Israel que Joe Biden conheceu está desaparecendo, um novo país está emergindo

Por Thomas Friedman
Atualização:

Sei exatamente como o texto começaria se eu pudesse colocar um memorando sobre a mesa do presidente Joe Biden a respeito do novo governo de Israel:

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Excelentíssimo Sr. Presidente, não sei se vossa excelência se interessa em história judaica, mas a história judaica certamente se interessa em vossa excelência hoje. Israel está à beira de uma transformação histórica — de uma democracia plena para algo menor, e de uma força estabilizadora para uma fonte de instabilidade na região. O senhor pode ser o único indivíduo capaz de impedir o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e sua coalizão extremista de transformar Israel em um bastião do fanatismo iliberal.

Eu também diria a Biden que temo a possibilidade de Israel estar se aproximando de um sério conflito civil. Guerras civis raramente ocorrem em razão de alguma política, tendem ser disputas pelo poder. Por anos, os acalorados debates em Israel sobre os Acordos de Oslo foram a respeito de políticas. Mas hoje, este confronto em cocção é sobre poder — quem pode dizer a quem como viver em uma sociedade altamente diversa.

O resumo: Um governo ultranacionalista e ultraortodoxo, formado após o campo de Netanyahu vencer a eleição por uma minúscula margem (aproximadamente 30 mil votos entre cerca de 4,7 milhões), está liderando uma tomada de poder que a outra metade dos eleitores considera não apenas corrupta, mas também uma ameaça aos seus próprios direitos civis. Por isso, uma manifestação inicialmente de 5 mil pessoas durante o fim de semana acabou crescendo e concentrando 80 mil.

Milhares de manifestantes se reuniram em Tel Aviv para protestar contra a reforma do Judiciário proposta pelo novo governo. Foto: Oded Balilty/ AP - 14/01/2013

O Estado de Israel que Joe Biden conheceu está desaparecendo, um novo país está emergindo. Muitos ministros do atual governo israelense são hostis aos valores americanos, e quase todos são hostis ao Partido Democrata. Netanyahu e seu ministro de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, já conspiraram com republicanos para arquitetar o discurso de Netanyahu ao Congresso americano em 2015, contra desejos e políticas de Biden e do então presidente, Barack Obama. Eles gostariam de ver um republicano na Casa Branca e preferem apoio de cristãos evangélicos ao de judeus progressistas, Mohammed bin Salman em vez de Alexandria Ocasio-Cortez.

Não tenha nenhuma dúvida sobre isto. O presidente não deveria se iludir com a conversinha deles de “nosso velho amigo Joe”.

A atual crise em Israel pode ser apresentada para Biden como um assunto constitucional interno, do qual ele deve permanecer afastado. Mas, ao contrário, Biden deveria mergulhar no assunto (exatamente como Netanyahu), porque seu desfecho tem implicações diretas sobre interesses de segurança nacional dos Estados Unidos. Não me iludo achando que Biden tem capacidade de reverter as tendências mais extremistas que emergem hoje em Israel, mas ele conseguiria sim direcionar as coisas para um caminho mais sensato e talvez evitar o pior com algum amor-rude de uma maneira que nenhum outro estrangeiro seria capaz.

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A crise mais premente é a seguinte: Os tribunais de Israel, liderados por sua Suprema Corte, na maioria das situações sempre atuaram como protetores ferozes dos direitos humanos, principalmente de direitos de minorias. Essas minorias incluem cidadãos árabes, LGBT+ e até judeus reformistas e conservadores que querem as mesmas liberdades e direitos de praticar religião dos quais os ortodoxos e ultraortodoxos desfrutam. Além disso, em razão da Suprema Corte supervisionar as ações de todos os braços do Executivo, incluindo das Forças Armadas, o Judiciário com frequência protegeu direitos de palestinos, incluindo contra abusos de colonos israelenses e expropriações ilegais de imóveis que os pertencem.

Mas o atual governo de Netanyahu busca alterar radicalmente a situação na Cisjordânia, efetivamente anexando o território sem declarar oficialmente a anexação. E o plano tem apenas um grande obstáculo: a Suprema Corte e as instituições judiciais de Israel.

Conforme resumiu The Times of Israel, a reforma no Judiciário que Netanyahu pretende empurrar na Knesset daria “ao governo controle total sobre a nomeação de magistrados, incluindo para a Suprema Corte”, substituindo um processo profissional e muito menos partidário. A reforma também limitaria severamente “a capacidade da Suprema Corte de derrubar leis” — especialmente legislações que possam afrontar direitos de minorias em Israel — “e possibilitaria à Knesset”, atualmente controlada por Netanyahu, “retramitar” projetos de leis derrubadas pela Justiça.

A reforma pretende ainda diminuir a independência de painéis fiscalizadores do Judiciário instalados em cada ministério do governo. Em vez de se reportar ao procurador-geral, eles passariam a ser apontados pelos ministros.

Em síntese, o Executivo de Israel assumiria controle do Judiciário. O que segue exatamente a cartilha majoritária turco-húngara e especialmente quando consideramos mais um elemento: tudo isso está sendo feito em um momento em que Netanyahu é processado na Justiça sob acusações de chantagem, fraude e quebra de confiança denunciadas por seu próprio procurador-geral.

Apesar de liderar o novo governo, Binyamin Netanyahu é acusado de corrupção, em investigação autorizada pelo Judiciário. Foto: Ronen Zvulun/ AFP - 08/01/2023

Anteriormente este mês, Moshe Ya’alon — ex-ministro da Defesa de Netanyahu, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel e de direita — tuitou que as “reformas” de Netanyahu no Judiciário revelaram “as verdadeiras intenções de um réu (…) disposto a incendiar o país e seus valores (…) para escapar do julgamento. (…) Quem teria acreditado que, menos de 80 anos após o Holocausto que assolou nosso povo, um governo criminoso, messiânico, fascista e corrupto seria estabelecido em Israel com o objetivo de resgatar um réu”.

Netanyahu, evidentemente, afirma que isso não passa nem de longe por sua cabeça — Deus o livre.

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Israel, por não ter uma Constituição formal, é um país governado por um sistema bastante complexo de pesos e contrapesos jurídicos que evoluiu ao longo de décadas. Juristas me dizem que existe um argumento por algumas mudanças no Judiciário. Mas reformá-lo à maneira de Netanyahu — não por meio de uma convenção nacional não partidária, mas com a Suprema Corte sendo despida de poderes pelo governo mais radical na história israelense e sabendo que o processo criminal contra Netanyahu poderia evaporar diante do tribunal superior — é fedorento demais.

Colocando em termos americanos, seria como se Richard Nixon tentasse expandir a Suprema Corte dos EUA com ministros pró-Nixon durante a investigação criminal de Watergate.

A atual presidente da Suprema Corte de Israel, Esther Hayut, declarou na semana passada que a reforma proposta por Netanyahu “despedaçará o sistema Judiciário e é na realidade um ataque desenfreado”. Adicionalmente, grupos de pilotos militares aposentados, executivos do setor de alta tecnologia, advogados e juízes aposentados, de esquerda e de direita, incluindo alguns ministros aposentados da Suprema Corte, assinaram cartas afirmando basicamente a mesma coisa.

Os EUA deram a Israel quantidades enormes de assistência econômica, dados de inteligência sensíveis, nossas armas mais avançadas e apoio virtualmente automático contra resoluções enviesadas na ONU. Eu apoio isso. Também nos opomos há muito tempo a qualquer ação jurídica de instituições internacionais com base no argumento de que Israel possui um Judiciário independente, que — não sempre, mas muitas vezes — fez valer de maneira crível normas aceitas no direito internacional sobre o governo e o Exército de Israel mesmo quando isso significou proteger direitos de palestinos.

Antes de Netanyahu se sair bem-sucedido em colocar a Suprema Corte de Israel sob sua vontade, Biden precisa lhe dizer em termos claros:

Bibi, você está desprezando interesses e valores americanos. Preciso que você me diga certas coisas agora mesmo — e você também precisa ouvir de mim certas coisas. Preciso saber: O controle de Israel sobre a Cisjordânia trata-se de uma ocupação temporária ou de um processo de anexação, como advogam os membros de sua coalizão? Porque eu não serei culpado por isso. Preciso saber se você realmente vai colocar os tribunais sob sua autoridade política de maneira que torne Israel mais parecido com Turquia e Hungria, porque não serei culpado por isso. Preciso saber se seus ministros extremistas alterarão o status do Monte do Templo porque isso poderia desestabilizar a Jordânia, a Autoridade Palestina e os Acordos de Abraão — o que realmente prejudicaria os interesses dos EUA. E eu não serei culpado por isso.

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Veja como suponho que Netanyahu responderia:

Joe Biden, ainda vice-presidente de Barack Obama, e Binyamin Netanyahu, durante encontro em Jerusalém, em 2010. Foto: Ronen Zvulun/ Reuters - 09/03/2010

Joe, Joey, meu velho amigo, não me pressione com essas coisas agora. Eu sou o único que contém esses lunáticos. Você e eu, Joe, nós podemos fazer história juntos. Vamos juntar nossas forças não apenas para deter as capacidades nucleares do Irã, mas para ajudar — de qualquer modo possível — os manifestantes iranianos que tentam derrubar o regime clerical em Teerã. E vamos, você e eu, forjar um acordo de paz entre Israel e Arábia Saudita. O MBS está disposto se eu conseguir convencer você a dar à Arábia Saudita garantias de segurança e armas avançadas. Vamos fazer isso, e então eu dispenso esses lunáticos.

Eu aplaudo ambos os objetivos de política externa, mas eu não pagaria por ele com vistas grossas dos EUA ao putsch de Netanyahu contra o Judiciário. Se fizermos isso, semearemos vento para colher tempestade.

Israel e EUA são amigos. Mas hoje, uma parte nessa amizade — Israel — está mudando seu caráter fundamental. O presidente Biden, da maneira mais atenciosa possível, precisa declarar claramente que essas mudanças violam interesses e valores dos EUA e que nós não seremos idiotas úteis de Netanyahu nem ficaremos calados./ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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