Opinião | Uma lei marcial é possível nos EUA?

Presidente americano não tem à sua disposição o mesmo mecanismo existente na Coreia do Sul, mas Constituição deixa brechas para exceder poderes militares

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Por David French (The New York Times)

Bem, aquilo foi perigoso — e absurdo.

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Na terça-feira, o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, declarou subitamente lei marcial. Ele suspendeu a atividade política em uma das mais avançadas e prósperas democracias do mundo e tentou colocar os meios de comunicação sob controle do governo.

Soldados aparentemente confusos e surpresos tiveram dificuldades para conter uma Assembleia Nacional rebelde, que aprovou imediatamente o fim do controle militar, após uma série de cenas caóticas que chocaram a nação. O presidente recuou poucas horas após desencadear uma crise política que ameaçou a democracia.

Conforme o drama se desdobrava na Coreia do Sul, meu telefone vibrava com uma pergunta de amigos e colegas de meios de comunicação — incluindo alguns dos indivíduos de mentalidade mais sóbria que conheço. Isso pode ocorrer por aqui? O presidente dos Estados Unidos — ou qualquer outro líder americano — tem capacidade de criar uma emergência política similar?

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Protesto em frente a Assembleia Nacional exige afastamento do presidente Yoon Suk Yeol após declaração de lei marcial.  Foto: Philip Fong/AFP

A reposta curta é não. A mais longa é sim — se um presidente (ou governador) explorar ambiguidades na legislação americana.

Tratemos primeiramente da resposta curta. Ao contrário da Coreia do Sul, os EUA não possuem nenhum mecanismo constitucional claro para um presidente simplesmente decretar controle militar. Os governadores dos Estados têm capacidade de declarar lei marcial na eventualidade de uma emergência, mas não podem revogar a Constituição federal, e qualquer declaração de controle militar sobre Estados é sujeita a revisão judicial.

Houve algumas declarações limitadas de lei marcial na história dos EUA. O general Andrew Jackson declarou lei marcial no Havaí após o ataque japonês contra Pearl Harbor, para dar dois exemplos.

Além disso, o presidente Abraham Lincoln declarou lei marcial em 1862 e a aplicou “a todos os rebeldes e insurgentes, seus auxiliares e cúmplices dentro dos Estados Unidos e a todas as pessoas que desencorajem alistamentos voluntários, resistam a convocações a milícias ou sejam culpados de qualquer prática desleal fornecendo auxílio e conforto a rebelados contra a autoridade dos Estados Unidos”. Mas não há nenhuma autoridade constitucional americana para um controle militar comparável ao da Constituição sul-coreana.

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A resposta mais longa, porém, é muito menos reconfortante. Ainda que não haja nenhum mecanismo constitucional para o controle militar, a história demonstra que certas vezes líderes americanos exercem seus poderes de guerra além do limite da Constituição (ainda que a declaração de lei marcial feita por Roosevelt no Havaí seja defensável, o confinamento de nipo-americanos determinado por ele não é).

Ainda pior, existe um ordenamento jurídico para a intervenção militar em assuntos domésticos, e seu estatuto, a Lei da Insurreição, é redigido tão precariamente que eu passei a qualificá-la como a legislação mais perigosa dos EUA.

A Lei da Insurreição é quase tão velha quanto os EUA. A legislação data de 1792 e permite ao presidente acionar tropas americanas nas ruas dos EUA para impor a ordem e manter o controle do governo.

Não há nada inerentemente errado em conceder esse poder ao presidente, contanto que ele seja circunscrito apropriadamente. Há numerosos exemplos de desafios ilegais à autoridade do governo: a Rebelião do Uísque no segundo mandato de George Washington, a Guerra Civil, a resistência sulista à Reconstrução e os distúrbios de Los Angeles, em 1992 (a última vez que a lei foi invocada).

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Mas seu estatuto é terrivelmente mal escrito. A primeira seção não é problemática — permite ao presidente acionar os militares sob requisição da legislatura estadual ou do governador, se a legislatura não puder se reunir. Isso faz sentido. Se perde o controle, um governador deve poder ser capaz de requisitar forças federais para ajudar.

As duas seções seguintes do estatuto, porém, são muito piores. A Seção 252 da lei concede ao presidente autoridade para acionar tropas domesticamente “sempre que o presidente considerar que obstruções, combinações ou reuniões ilegais ou rebeliões contra a autoridade dos Estados Unidos tornam impraticável o cumprimento das leis dos Estados Unidos em qualquer Estado segundo o curso ordinário dos procedimentos judiciais”.

A Seção 253 tem uma terminologia parecida, concedendo ao presidente poder para “adotar tais medidas conforme ele considere necessário” para suprimir “qualquer insurreição, violência doméstica, combinação ilegal ou conspiração”.

Note a extrema confiança depositada no presidente. Ele pode acionar tropas quando considerar necessário. Não há nenhuma supervisão do Congresso. Se acreditar que precisa de soldados nas ruas, ele pode ordenar que soldados tomem as ruas.

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Presidente eleito dos EUA, Donald Trump, cogitou colocar tropas nas ruas durante os protestos que se seguiram a morte de George Floyd no primeiro mandato.  Foto: Allison Robbert/Associated Press

E, de fato, Trump quase invocou a Lei da Insurreição em seu primeiro mandato. No verão de 2020, ele considerou acionar tropas federais para suprimir os distúrbios urbanos que explodiram depois do assassinato de George Floyd, mas acabou recuando após seu então secretário da Defesa, Mark Esper, declarar publicamente oposição ao plano.

Desde que deixou a presidência, contudo, Trump tem expressado arrependimento por não ter acionado as tropas em 2020, e seus aliados o têm instado a usar a Lei da Insurreição em seu segundo mandato para controlar a fronteira e suprimir manifestações. Ou ambos.

Mas a Lei da Insurreição não é a única provisão ambígua e indeterminada da legislação americana capaz de expandir a autoridade para empregar as Forças Armadas no policiamento doméstico. Presidentes não são os únicos líderes americanos com capacidade de provocar caos, e vários governadores republicanos estão buscando expandir sua própria autoridade para usar a força.

O Artigo 1.º, Seção 10 da Constituição, nega aos Estados o poder de entrar em guerra a não ser que sejam “efetivamente invadidos”. O Artigo 1.º, Seção 9 protege a provisão do habeas corpus (uma antiga doutrina jurídica que permite a pessoas encarceradas peticionar por sua soltura) “a não ser em Casos de Rebelião ou Invasão em que a segurança pública possa requerer”.

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Lincoln baseou-se no Artigo 1.º, Seção 9 quando revogou o habeas corpus durante a Guerra Civil, um caso óbvio de rebelião.

Poderíamos pensar que o significado dessas passagens é claro, que é fácil definir uma invasão. Pensemos, por exemplo, na invasão russa à Ucrânia ou na invasão norte-coreana à Coreia do Sul, em 1950: ataques violentos com intenção de destruir ou ocupar nações soberanas.

Mas vários governadores republicanos — incluindo, mais notavelmente, o governador do Texas, Greg Abbott — têm classificado o aumento do número de imigrantes na fronteira como uma “invasão”. O Texas usou essa suposta invasão para justificar a instalação de barreiras no Rio Grande, apesar dessas barreiras poderem, de outro modo, violar a legislação federal.

Anteriormente este ano, o professor de direito Ilya Somin, da Universidade George Mason, escreveu um artigo no website Lawfare explicando o significado público original de “invasão” na Constituição. Nas palavras de James Madison, o termo se refere a “uma operação de guerra”, e “proteger-se de uma invasão é um exercício do poder de guerra”.

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Frank Bowman, professor-emérito da Faculdade de Direito da Universidade do Missouri, escreveu no website Just Security que, ao longo da Convenção Constituinte da 1787 e da ratificação dos debates, “Com algumas exceções, em que o termo ‘invasão’ é usado metaforicamente, como ao referir-se a ‘invasão de direitos’, a palavra define invariavelmente uma incursão armada hostil interna ou contra o território dos Estados ou do país, uma incursão que deve ser enfrentada com resposta militar”. Numa decisão de julho, a Corte de Apelações para a 5.ª Circunscrição decidiu que as barreiras instaladas pelo Texas não contrariavam a lei federal, mas o fizeram sem responder se o fluxo migratório constitui uma invasão segundo o significado da Constituição.

Numa opinião discordante, contudo, o juiz James Ho — segundo relatos um dos finalistas na lista de Trump para a próxima vaga na Suprema Corte — escreveu que não cabe aos tribunais decidir se uma invasão ocorreu ou não. A questão é política, a ser decidida por representantes eleitos do governo. Sob esse raciocínio, se um governador afirma que há uma invasão, há uma invasão.

Se o raciocínio de Ho for adotado pela Suprema Corte, presidentes e governadores inescrupulosos poderiam adquirir uma nova autoridade imensa sobre guerra, paz e processos devidos. Migrantes econômicos e solicitantes de asilo poderiam ser tratados como combatentes inimigos. Presidentes poderiam ordenar detenções em larga escala sem garantir aos detidos acesso a tribunais federais.

Antes da era Trump, poucos americanos percebiam o quanto a sobrevivência da nossa democracia depende da honra e da decência dos nossos presidentes. Sim, nossa Constituição é repleta de pesos e contrapesos, mas não abrange todas as contingências, e estatutos amplos dão aos presidentes autoridade potencial em extrema demasia.

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O presidente Joe Biden e seus aliados no Congresso fizeram um importante trabalho para escorar a democracia americana. Ao emendar a Lei de Contagem Eleitoral, eles ajudaram a proteger as eleições presidenciais de algum outro esforço de golpe à la Trump, para dar um exemplo. Mas o governo Biden colocou foco em preservar as eleições, não em reformar os poderes da presidência.

Trump ainda pode usar a Lei da Insurreição para acionar tropas quando desejar acionar tropas. Ele pode declarar uma invasão e desafiar os tribunais a discordar. Nenhum desses poderes é maior do que o poder do presidente sul-coreano de declarar lei marcial, mas eles são perigosos para a democracia americana.

Faz tempo que temos certeza de que nossos presidentes não abusariam do poder que detêm, e a maioria deles provou merecer essa confiança. Trump não merece. Ainda que possamos esperar que os tribunais e o Congresso o contenham no segundo mandato, a legislação americana lhe dá mais poder do que ele deveria possuir por direito. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por David French

David French é colunista do The New York Times. É veterano da Operação Liberdade Iraquiana e um ex-advogado constitucional. Seu livro mais recente é “Divided We Fall: America’s Secession Threat and How to Restore Our Nation” (Divididos Caímos: A Ameaça de Secessionismo Americano e Como Restaurar Nossa Nação)

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