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A moda cancelou a cultura do cancelamento?

A história recente de John Galliano, Dolce & Gabbana e até mesmo de Ye sugere que a resposta pode ser sim

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Por Vanessa Friedman

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - O documentário Ascensão e Queda – John Galliano, que aborda a perda de prestígio e de reputação do ex-estilista da Dior depois de ter feito comentários antissemitas em um bar em Paris, em 2011, e sua longa jornada de retorno ao topo, é interessante por várias razões: é uma oportunidade de ouvir Galliano falar de suas lutas, e também de relembrar o mundo da moda da década de 1990. Mas a quantidade de artigos de opinião que tem inspirado – sobre as transgressões, o arrependimento e seu aparente estado atual de “perdoado” – também é surpreendente.

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De fato, a maior importância do filme pode não estar relacionada à história contada, mas sim ao que parece representar: o fim oficial do exílio de Galliano. Serve como epílogo para um período que começou quando o estilista foi demitido da Dior e condenado por crimes de ódio, e que terminou depois de um longo período de expiação e de um novo emprego na Maison Margiela, na qual seu trabalho é celebrado novamente. O documentário também encerra uma longa era de indignação, sobretudo no setor da moda. “Parece que, no fim, todo mundo pode retornar”, comentou Achim Berg, ex-líder do McKinsey & Co, grupo internacional de roupas, moda e artigos de luxo.

Mesmo que personalidades de outros setores tenham sido canceladas e voltado à vida pública – por exemplo, Aziz Ansari e Louis C. K. –, a moda é a única que usa as pessoas para humanizar as marcas, por isso suas ações, bem como suas criações, estão intrinsecamente conectadas ao destino de uma empresa muito maior. Possivelmente, o único equivalente é o segmento da gastronomia. Mas, mesmo em comparação com os chefs mais famosos, os estilistas e as celebridades em geral desfrutam maior renome, e o impacto financeiro é significativamente maior. Como resultado, é possível que, neste caso, assim como em muitas tendências, a cultura siga a moda – ou vice-versa.

Ye, artista anteriormente conhecido como Kanye West, e sua mulher, Bianca Censori, na fila do gargarejo do desfile da Marni em Milão. Foto: Simbarashe Cha/The New York Times

Em resumo, além de Galliano, existe uma breve lista de repudiados que agora se redimiram, que inclui:

– Ye, anteriormente conhecido como Kanye West, artista que foi amplamente criticado e que perdeu acordos corporativos depois de fazer declarações racistas e antissemitas, em 2022. Mas, no mês passado, ele apareceu na primeira fila do desfile da Marni, e atualmente aparece no catálogo do décimo aniversário da Y/Project, com Charli XCX e Tyga. Mesmo que a Adidas tenha encerrado oficialmente sua colaboração com Ye, a empresa continua promovendo e vendendo produtos da linha Yeezy, criada pelo rapper.

– A Balenciaga, linchada nas redes sociais em 2022, depois que uma campanha publicitária mal projetada para as festividades levou algumas pessoas a alegar que a marca estava promovendo pornografia infantil. Atualmente, não só conta com o selo de aprovação de embaixadores como Kim Kardashian (célebre admiradora da marca, que se distanciou dela depois da controvérsia, mas que agora voltou a apoiá-la publicamente), Nicole Kidman e Michelle Yeoh, mas também encontrou um novo impulso depois de um desfile recente muito aclamado, substituindo a autoflagelação e o arrependimento pela visibilidade altamente positiva.

– A Dolce & Gabbana, que caiu em desgraça em 2018, quando pareceu ofender toda a China com uma campanha publicitária que perpetuava estereótipos raciais, e que já tinha recebido várias críticas relacionadas à gordofobia e à orientação sexual. Em 2022, a marca não só patrocinou todo um casamento Kardashian, mas também colaborou com Kim e esteve em todos os últimos tapetes vermelhos. Usher e Alicia Keys usaram a marca no Super Bowl, que teve uma audiência televisiva de mais de 120 milhões de espectadores.

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– A Marchesa, fundada por Georgina Chapman, ex-esposa de Harvey Weinstein, perdeu visibilidade depois das acusações dos crimes deste, mas voltou a se tornar uma marca indispensável para celebridades como Hannah Waddingham e Padma Lakshmi em cerimônias de premiação.

– Alexander Wang, acusado em 2021 de má conduta sexual, chegou a um acordo em uma ação judicial e promoveu um desfile no ano passado que foi frequentado pela elite de Nova York e de Los Angeles.

Teorias da relatividade

É fácil descartar a inconstância da moda como produto de sua superficialidade – afinal, trata-se de uma indústria baseada em impulsionar mudanças praticamente a cada quatro meses –, mas pode estar acontecendo algo mais complicado e significativo. “Creio que está diretamente relacionado com a atual obsessão da indústria pela discrição e pelo decoro – sua natureza não conflitante e sua aversão ao risco”, afirmou Gabriella Karefa-Johnson, estilista e ativista, em referência à tendência da moda de ser cuidadosa e de evitar riscos diante de um clima econômico e político incerto, ao acolher novamente personagens conhecidos (por exemplo, estilistas do sexo masculino, brancos e com a mesma barba), mesmo que tenham feito algo comprometedor no passado.

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Berg comentou que talvez seja só uma questão de proporção: “Existem tantas tensões no mundo neste momento, com tantas implicações enormes, que, em comparação, o resto parece menos grave. Depois das últimas eleições dos Estados Unidos, todos os parâmetros a respeito do que é aceitável, ou não, mudaram.” De acordo com ele, a cultura do cancelamento pode ter sido um fenômeno da era da covid.

“É possível que estejamos experimentando certo grau de fadiga pela indignação. O primeiro escândalo, entre tantos, é sempre o pior, mas cada desculpa que aceitamos coletivamente diminui o drama do próximo incidente”, disse Susan Scafidi, fundadora do Instituto de Direito da Moda da Universidade Fordham, em Nova York. Isso é totalmente verdadeiro quando as ações pelas quais se pedem desculpas variam tanto, passando por agressões sexuais, crimes de ódio, ofensas raciais ou culpa por associação – e desde crimes verdadeiros que podem ser levados ao tribunal até crimes julgados pela “corte” da opinião pública.

Padma Lakshmi veste Marchesa no evento Time 100 Gala, em Nova York. Foto: Krista Schlueter/The New York Times

Contudo, como apontou Julie Zerbo, fundadora do site The Fashion Law, os detalhes e a gravidade dos crimes podem divergir, mas os argumentos são, em grande parte, os mesmos. Primeiro, existe um protesto on-line; depois, um pedido de desculpas; em seguida, o acusado desaparece para “se concentrar no trabalho” (ou algo parecido), passando por um período de inatividade, até chegar ao ressurgimento – mais humilde, mas aceito. Esse padrão se tornou tão previsível que é quase de praxe, alimentando a tendência de ver todos os casos como iguais, confundindo os que são mais e menos graves.

Crime e castigo

Existe algo imperdoável? “No caso daqueles que não recuperam seu antigo status – Anand Jon e Harvey Weinstein, por exemplo –, um fator determinante é que as transgressões são tão graves a ponto de a justiça intervir”, explicou Scafidi. Também é importante notar que, como afirmou Zerbo, o que acontece em locais nos quais as opiniões têm o potencial de se espalhar e ganhar influência, como no X, antigo Twitter, e o que o consumidor ao redor do mundo inteiro sabe, pode ser diferente. A Balenciaga nunca experimentou na Ásia a mesma rejeição que enfrentou no Ocidente. E mesmo que as celebridades tenham se mostrado cautelosas com a Dolce & Gabbana durante alguns meses depois do incidente da China, logo voltaram quando os tapetes vermelhos (e as viagens gratuitas à Itália para assistir à extravagância da alta-costura) as chamaram.

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“Nenhum deles foi verdadeiramente cancelado. Só não estavam no centro das atenções. Depois de algum tempo, os renegados retornam, graças ao seu trabalho ou ao seu ‘gênio’ persistente, ao seu potencial para ganhar dinheiro ou ao seu capital social, que nunca se depreciou completamente”, observou Karefa-Johnson.

Para Anna Wintour, editora da “Vogue”, que desempenhou um papel decisivo na reabilitação de pelo menos três dos estilistas cancelados – Galliano, cujo retorno à moda ajudou a orquestrar; Chapman, que saiu na revista em 2018, e Demna, da Balenciaga, cujo “mea culpa” foi publicado no início do ano passado –, isso é mais uma correção do curso depois de uma reversão da mentalidade coletiva. “Para mim, a questão não é só o perdão, mas também a maneira severa como julgamos as pessoas acima de tudo. Acredito firmemente que nossa cultura avançou muito depressa em direção à condenação – e a um sentimento de certeza de que determinadas ofensas ou erros são imperdoáveis. A verdade é que raramente conhecemos a história completa, e todo mundo tem falhas”, escreveu ela em um e-mail.

O problema é como medir o arrependimento. Ninguém pode olhar a alma de outra pessoa. É uma questão de dinheiro destinado perpetuamente à parte prejudicada? Ou das ações em si? A vergonha declarada exige um acordo público a respeito do que constitui a expiação e como esta pode ou deve ser avaliada, e isso é um tema muito mais difícil de abordar. Na verdade, é mais fácil encolher os ombros e ir em frente.

“Falando por mim, não perdoei a Dolce & Gabbana. Acredito que existe um caminho muito claro para a redenção, como a reparação financeira”, disse Karefa-Johnson, que se recusou a fotografar roupas da marca nos últimos cinco anos, em parte porque sua desculpa pública lhe pareceu pouco convincente.

A questão, de acordo com Scafidi, é a seguinte: “No fim das contas, os consumidores escolhem a moda olhando para o espelho, e não para o estilista por trás dela. Pode ser difícil se afastar de uma roupa que favorece a aparência para defender um princípio invisível.” E aonde os consumidores vão com sua carteira, as empresas vão atrás. Até certo ponto, isso sempre foi assim.

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