Devolução de artefatos reais que estavam na França atrai multidões para exposição no Benin

À medida que mais arte saqueada volta à África, países lutam para descobrir a maneira certa de exibi-la; como 200.000 pessoas fizeram fila para exposição sugere que o Benin encontrou uma resposta

PUBLICIDADE

Por Elian Peltier
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Durante séculos, seus ancestrais governaram um poderoso reino onde hoje é o Benin, mas a primeira vez que Euloge Ahanhanzo Glèlè viu o trono de seu tataravô foi em um museu de Paris há uma década.

PUBLICIDADE

“Como veio parar aqui?” lembrou-se de se perguntar diante do trono do rei Glélé, cercado de obras de arte saqueadas pelas forças coloniais francesas no final do século XIX.

Esse trono está agora de volta ao Benin depois que a França devolveu 26 artefatos no ano passado, e em uma manhã recente Ahanhanzo Glèlè se curvou e sentou-se descalço na frente dele, assim como os súditos fariam na frente de um rei, ele disse.

Euloge Ahanhanzo Glèlè, um escultor do Benin, em frente ao trono de seu antepassado, o rei Glélé, em uma exposição de artefatos saqueados recentemente devolvidos ao país. Foto: Carmen Abd Ali/The New York Times

Ahanhanzo Glèlè, um escultor de 45 anos e um dos milhares de descendentes do rei Glélé, que reinou sobre o Reino do Daomé no século 19, disse estar esperançoso que o retorno das obras de arte leve os beninenses a explorar sua história e patrimônio artístico.

“O despertar artístico de nossa população ficou desligado do final do século 19 até 2022″, ele disse. “Estamos acordando agora”.

Em 2017, o presidente Emmanuel Macron, da França, disse que “a herança africana não pode ser prisioneira dos museus europeus” e prometeu devolver as obras de arte saqueadas. Mas durante anos depois dessa promessa, as peças foram devolvidas lentamente.

Agora, elas estão pouco a pouco se tornando um fluxo constante, dizem os historiadores da arte, e países da África Ocidental e Central estão explorando a melhor forma de exibi-las e como educar um público que pode nunca ter ouvido falar de sua existência, muito menos visto as obras.

Publicidade

O governo de Benin, uma nação da África Ocidental de 12 milhões de pessoas, acredita ter encontrado o caminho certo.

Mais de 200.000 pessoas foram a uma exposição gratuita das obras de arte no palácio presidencial, com 90% de visitantes beninenses, segundo o governo, que promoveu fortemente a exposição.

As crianças pediram aos pais que as levassem porque não queriam perder o que os amigos estavam discutindo na escola. Líderes espirituais viajaram de todo o país para contemplar os artefatos antigos. Algumas famílias fizeram fila por meio dia antes que pudessem dar uma olhada.

A exposição, Arte do Benin de ontem e hoje: da restituição à revelação, também aproveitou a oportunidade para expor as multidões aos artistas produzindo agora. Ela apresenta 34 artistas contemporâneos do Benin em uma tentativa de melhor situá-los no mapa da próspera cena de arte contemporânea da África Ocidental.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

“Todos os artistas sonham com a posteridade, por isso temos a honra de estar ao lado deles”, disse Julien Sinzogan, um dos artistas expostos, sobre os artefatos. “Agora também fazemos parte da posteridade.”

Após a popularidade da exposição inaugural na primavera, ela reabriu no mês passado. Na manhã da reabertura, Marcus Hounsou, um menino beninense francês de 13 anos que mora na França e esteve na exposição no verão, saiu com seu smartphone cheio de fotos e um pensamento persistente que ele disse que precisaria de tempo para esclarecer. “Eu não conhecia nenhum desses artistas”, ele disse. “Embora eu conheça tantos franceses ou americanos.”

Os artefatos antigos, pilhados pelas forças coloniais francesas quando saquearam o palácio do rei Béhanzin em 1892, foram exibidos até o ano passado no museu Quai Branly, em Paris. Eles incluem efígies de madeira dos reis Béhanzin e Glélé, representados como meio homem, meio animal; dois tronos; e quatro portões pintados do palácio de Béhanzin.

Publicidade

Harlen Zannou, 12, visitando a parte de arte contemporânea da exposição em Cotonou, Benin, com seu pai e sua irmã mais nova. As crianças pediram aos pais que os levassem para não perder o que os colegas estavam discutindo. Foto: Carmen Abd Ali/The New York Times

Quase todo o patrimônio artístico antigo da África permanece na Europa e nos Estados Unidos, segundo a historiadora francesa Bénédicte Savoy, coautora de um relatório sobre restituições. No entanto, da Alemanha à Nigéria; da Bélgica ao Congo; e da França ao Senegal, Costa do Marfim e Benin, países europeus e africanos estão agora trabalhando para tornar as restituições mais sistemáticas.

A devolução dos 26 artefatos no ano passado foi o maior desses atos entre uma antiga potência colonial europeia e um país africano desde a promessa de Macron em 2017.

No palácio presidencial, Ahanhanzo Glèlè, descendente do rei, também é um dos artistas contemporâneos expostos. Em uma sala adjacente ao trono, suas próprias esculturas de terracota abrem a parte contemporânea da exposição, a primeira vez que seu trabalho é exibido em uma instituição beninense.

Mas ele previu que o retorno dos artefatos não preencheria as lacunas do conhecimento das pessoas sobre seu passado da noite para o dia.

“Nossos filhos não conhecem nossa história”, disse o artista, descrevendo os desafios que Benin enfrenta hoje para educar sua população sobre um passado que foi arrebatado e guardado em museus europeus por mais de um século. “Mesmo eu, quando me perguntam sobre meus próprios ancestrais, muitas vezes não sei.”

Parte dessa história é agora apresentada por artistas contemporâneos não muito longe do palácio presidencial. Ao longo do porto de Cotonou, a maior cidade do Benin, um muro de arte de rua financiado pelo governo, que se estende por quase 800 metros, apresenta murais chamativos e grafites celebrando o passado do Benin e as esperanças para seu futuro.

Quando a exposição terminar no final de agosto, os objetos viajarão para Uidá, outrora um porto de escravos, onde as autoridades estão construindo um novo museu da escravidão.

Publicidade

O governo também está construindo mais três museus, um deles destinado a promover o trabalho de artistas contemporâneos como Ahanhanzo Glèlè.

Em uma tarde recente em sua oficina, um pátio nos fundos de sua casa em um bairro operário de Cotonou, Ahanhanzo Glèlè moldou a escultura de argila de um agricultor segurando uma enxada. Amigos e conhecidos paravam para tomar uma cerveja ou um refrigerante com ele enquanto trabalhava.

Vinte esculturas semelhantes se seguiriam, todas encomendadas por um dos museus em construção. Com vista para alguns de seus trabalhos em um pequeno depósito havia uma mensagem na parede que dizia: “A argila me ajuda a encontrar a razão”.

Ahanzo Glèlè, pai de quatro filhos, disse que seus próprios filhos estavam mais interessados em mangá do que na história de seu país ou em suas esculturas, mas que ele estava determinado a mudar isso, inspirado em parte pela devolução dos pertences de seus ancestrais.

“Eu mal conto a eles sobre minha arte e suas influências”, ele disse. “Preciso fazer mais isso”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.