Ela superou obstáculos na comédia japonesa interpretando bêbados e bobalhões

A artista Niyo Katsura ignorou a rigidez nos papéis de gênero da sociedade do Japão e alcançou o sucesso em um espaço majoritariamente masculino

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Por Motoko Rich e Hikari Hida
Atualização:

OSAKA, Japão - No palco, Niyo Katsura veste um delicado quimono cor-de-rosa. De baixa estatura e voz aguda, poderia mais facilmente se passar por uma universitária do que por uma artista de 35 anos, intérprete de uma das mais antigas artes cômicas do Japão.

Niyo Katsura pratica o rakugo, ou contação de histórias clássica; artista enfrentou a rigidez dos papéis de gênero da sociedade japonesa. Foto: Shiho Fukada/The New York Times

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Contudo, quando chega ao momento de sua apresentação em que imita um vendedor bêbado de meia-idade, o público gargalha enquanto o personagem fala arrastado e machuca o próprio braço em uma tentativa totalmente frustrada de demonstrar as propriedades medicinais de um óleo misterioso.

A incrível habilidade de Katsura de retratar vários tipos de bêbados e bobalhões, muitos deles homens, é a razão de seu sucesso na arte do rakugo, forma clássica de comédia japonesa. Mês passado, ela se tornou a primeira mulher em 50 anos a ganhar um prestigioso prêmio para novos artistas de rakugo.

Depois de receber o troféu, Katsura proclamou: "Conseguem me ver agora, seus velhotes?"

Ao longo dos quase 300 anos de existência do rakugo, a versão pastelão das artes performáticas japonesas como o kabuki e o noh, a maioria de seus intérpretes têm sido homens, que retratam vários personagens de ambos os sexos. Desde que as mulheres entraram na profissão, há 40 anos, elas enfrentam a resistência dos colegas, dos críticos e do público, e atualmente representam pouco mais de 15 por cento dos quase mil artistas profissionais de rakugo.

A vitória de Katsura foi um divisor de águas, não só por ela ser mulher, mas também porque ela interpretou uma história tradicional com personagens exclusivamente masculinos. Algumas artistas anteriores, na tentativa de conquistar o público que se incomodava com o fato de uma mulher fazer papéis masculinos, transformavam os protagonistas masculinos das histórias clássicas em mulheres.

Mas Katsura estava determinada a contar histórias tradicionais da maneira como foram criadas originalmente. "Eu queria interpretar o rakugo exatamente da mesma maneira que os homens. Sinto que mudei o rumo da história", disse Katsura, que recebeu a pontuação máxima de todos os cinco juízes da competição, patrocinada pela NHK, a rede de televisão pública japonesa.

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O rakugo é uma tradição oral em que histórias - atualmente, há em torno de 600 em circulação entre os artistas profissionais - são transmitidas dos mestres aos aprendizes. A arte do rakugo tem regras rígidas: os artistas permanecem sentados em uma almofada no centro de um palco praticamente vazio, e usam pouquíssimos objetos de cena, como um leque e uma pequena toalha de algodão.

As histórias duram entre dez minutos e meia hora, e retratam dezenas de personagens, representados por diferentes expressões faciais, vozes e movimentos corporais, somente da cintura para cima.

Yoneji Katsura, mestre de Niyo Katsura, com a estátua de seu próprio mestre, Beicho Katsura. Foto: Shiho Fukada/The New York Times

"Nunca vi uma versão tão boa dessa história quanto a dela. Para o público, o importante é se divertir. Não importa muito se o intérprete é homem ou mulher", afirmou Kenichi Horii, crítico cultural que assistiu à apresentação premiada de Katsura.

Seu nome oficial é Fumi Nishii (Niyo Katsura é o nome artístico). Ela cresceu em Osaka, e seus pais não eram legalmente casados, o que não é comum no Japão. Em sua casa, não havia tanta rigidez em relação aos papéis de cada gênero quanto nas famílias mais tradicionais. "Minha mãe sempre dizia que não faz sentido separar as atividades para meninos e para meninas."

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Quando estudava arte budista na faculdade, em Kyoto, costumava assistir a apresentações de rakugo. Seus personagens favoritos a faziam lembrar-se dos alunos engraçadinhos da sala de aula, que eram punidos pelos professores. "Percebi que aquelas pessoas diziam coisas bobas e todo mundo ria. Aquilo me atraía muito."

Katsura observou que a vida no palco era mais difícil para as mulheres. Quando uma mulher se apresentava, "o público não ria". Ela também leu em um livro de um famoso artista de rakugo que as mulheres deixavam o público "desconfortável".

Depois de se formar, procurou por um mestre que aceitasse treiná-la. A primeira vez que foi ao camarim de Yoneji Katsura, experiente artista de rakugo em Osaka, a capital da comédia do Japão, ele lhe disse que não aceitaria nenhuma mulher como aprendiza. A segunda vez que ela pediu, ele novamente recusou. "Eu não acreditava que uma menina tão estranha quisesse ser minha aluna. Eu não confiava que poderia treinar uma aprendiza", lembrou-se Yoneji Katsura, de 64 anos.

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Ele se lembrou de que a via regularmente em suas apresentações, sempre sentada na primeira fileira, e que até ouviu uma voz vinda de cima, incentivando-o a dar uma chance a ela. Na terceira vez em que ela o procurou, o artista veterano concordou em deixá-la observar seus outros aprendizes praticando.

Durante seis meses, enquanto trabalhava meio período em um supermercado, ela assistiu aos ensaios na casa de Yoneji Katsura. Em 2011, este a inscreveu formalmente em seu programa de treinamento de três anos e lhe deu o nome artístico "Niyo", que significa duas folhas. Ela também assumiu o sobrenome que ele herdara de seu mestre.

Mas, embora reconheça os dons dela, Yoneji Katsura ainda não sabe ao certo se as mulheres deveriam realmente participar do mundo do rakugo: "O fundamento da arte do rakugo é que deve ser interpretada por homens", sentenciou.

A artista Niyo Katsura no camarim se preparando para encenar o rakugo. Foto: Shiho Fukada/The New York Times

Um ano antes de Niyo ganhar o prêmio da NHK, ela chegou às finais da competição. Um dos juízes lhe disse que ela precisava de mais experiência de vida para dar textura à sua interpretação.

No verão, Katsura contraiu o coronavírus. Teve medo, mas imaginou que talvez a doença pudesse aprofundar sua arte: "Pode ser que seja ruim dizer isso, mas pensei: talvez eu esteja mais próxima de me tornar uma boa artista de rakugo, já que estou experimentando este sentimento que nunca tive antes."

Gontaro Yanagiya, o juiz que lhe dera o retorno mais severo, contou ter chorado de alegria ao ver o progresso da artista depois de sua apresentação vitoriosa: "Foi como se ela tivesse voltado só para esfregar aquela apresentação na minha cara."

Katsura reconheceu que só atingiu seu atual sucesso graças às mulheres que vieram antes dela.

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Tsuyu no Miyako, de 65 anos, amplamente reconhecida como a primeira mulher a ter sucesso no rakugo moderno, lembra-se de que seus colegas homens contavam histórias vulgares sobre mulheres ou lhe davam tapas nas nádegas. Ela disse ter aprendido a bater de volta, mas em geral tinha de aceitar ser tratada daquela maneira: "Eu achava que fazia parte do meu trabalho."

No palco de Osaka, Katsura contou duas histórias, incluindo um conto clássico de 30 minutos sobre um pai que envia um de seus funcionários em busca de um par romântico para seu filho apaixonado.

Nas mãos de Katsura, um leque fechado se tornou uma espada, um par de hashis e um longo cachimbo. Com um girar de ombros, ela emulou o andar curvado de um homem, e, tocando o queixo, deu a entender que tinha uma barba.

No camarim, depois do espetáculo, Katsura dobrou seus quimonos e refletiu brevemente sobre sua apresentação: "O público era bom. Deu risada."

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