Bactérias que se alimentam de bactérias podem ajudar a vencer a guerra contra os germes

Embora microscópicas e pouco conhecidas, as bactérias predatórias estão entre os caçadores mais ferozes e eficazes do mundo

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Por Katherine J. Wu
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A sequência de ação favorita de Henry N. Williams se passa em uma lâmina de vidro com poucos milímetros de largura. Trata-se de um embate cinematográfico entre duas células bacterianas: Vibrio coralliilyticus, um grande micróbio de formato tubular, e um pequeno perseguidor, Halobacteriovorax, que se prendeu à bactéria maior. Desesperado para se livrar de seu atacante, o Vibrio se retorce em uma poça de líquido, descrevendo um fútil zigue-zague até “frear bruscamente", como descreve Williams.

Então o Halobacteriovorax começa seu trabalho sujo: ele perfura o exterior do Vibrio e começa a invadi-lo, refestelando-se nas entranhas do hospedeiro, clonando a si mesmo várias vezes e rompendo a carcaça para procurar sua próxima refeição.

Oscar Gronner The New York Times 

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Williams, microbiólogo da Universidade Florida A&M, deleita-se mostrando aos estudantes esses vídeos das chamadas bactérias predatórias, grupo difuso que inclui o Halobacteriovorax e uma série de outros assassinos microbiais. As bactérias nunca deixam de impressionar. “A plateia reage com muitas interjeições de ‘uau’ e ‘minha nossa’", disse ele. “Leões, tubarões, tigres — esses são os predadores que receberam nossa atenção. Mas há também um predador muito menor que é igualmente feroz.”

As bactérias predatórias são muito promissoras para o seu reduzido tamanho. Empregadas nas circunstâncias corretas, elas podem ajudar as pessoas a vencer micróbios nocivos no meio ambiente, ou expurgar patógenos do suprimento alimentar. Alguns especialistas acham que eles podem um dia servir como um tipo de terapia viva capaz de eliminar germes resistentes a remédios dos corpos de pacientes doentes para quem outros tratamentos fracassaram.

Mas nem a pequena comunidade de pesquisadores que estudam as bactérias predatórias descobriu como exatamente essas células escolhem e abatem seus hospedeiros. A resposta para essa pergunta pode revelar uma série de formas de enfrentar infecções persistentes, revelando a dinâmica entre predador e presa que existe também no mundo microscópico.

Para que possamos usar esse grupo de micróbios como “possíveis antibióticos vivos, temos que saber como ele cresce", disse o microbiólogo Terrens Saaki, que estuda bactérias predatórias no Instituto de Duve, na Bélgica. “Não podemos usá-los antes de compreendê-los.”

Pequenos terrores

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As bactérias predatórias foram descobertas por acidente. Os cientistas tropeçaram nelas há mais de meio século enquanto buscavam outro tipo de micróbio assassino chamado bacteriófago, um vírus capaz de infectar e matar bactérias. De acordo com Williams, antes disso “não se sabia que uma bactéria poderia ser predadora de outra dessa forma".

O fato de as bactérias predatórias terem passado tanto tempo sem serem detectadas é algo surpreendente. Muitas dezenas de espécies habitam os mares e a terra. Acredita-se que sejam resistentes o bastante para sobreviverem nas estranhas de animais, incluindo as dos humanos, e parecem resistir em toda parte, seja no esgoto sem tratamento ou nas guelras do carangueijo.

“Meus alunos as isolaram no solo, em lesmas que habitam córregos, no ralo da área de serviço do nosso laboratório", disse Laura Williams (nenhum parentesco com Henry Williams), que estuda bactérias predatórias na Providence College, em Rhode Island. “Onde quer que haja bactérias deve provavelmente haver também bactérias predatórias tentando devorá-las.” E os cientistas estão identificando cada vez mais desses predadores a cada ano — um paralelo notável com a diversidade mundial em bacteriófagos.

Mas os bacteriófago e as bactérias predatórias são monstros muito diferentes. Os bacteriófagos tendem a atacar uma gama pequena de hospedeiros, enquanto muitas bactérias predatórias são muito menos seletivas. Algumas dessas bactérias predatórias se dispõem a devorar dezenas ou até centenas de espécies de bactérias, podendo assim prosperar na maioria dos ambientes. E se os bacteriófagos agem rapidamente, massacrando populações inteiras em questão de horas, as bactérias predatórias são mais lentas, exigindo semanas de cultivo em laboratório.

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E se outros micróbios se contentam em alimentar-se de um caldo rico em nutrientes, as bactérias predatórias exigem um suprimento constante de presas vivas. “É um pé no —” disse Julia Johnke, microbióloga que estuda bactérias predatórias na Universidade de Kiel, na Alemanha.

Ainda assim, seu estilo de vida predatório é tão próspero que parece ter sido resultado da evolução mais de uma vez. Algumas espécies, como o Micavibrio, semelhante a um sanguessuga, agarram-se às vítimas como vampiros e sugam seu conteúdo. Outras, como o Myxococcus, são atiradores que atacam à distância, liberando uma enxurrada de enzimas capazes de dissolver a presa à distância. Algumas células do Myxococcus até se reúnem para caçar, atacando de acordo com um padrão coordenado.

Talvez o tipo mais notável desse conjunto, um grupo chamado Bdellovibrio compartilha o modus operandi do Halobacteriovorax: eles penetram no hospedeiro e o aniquilam de dentro para fora. A maioria dos especialistas em bactérias predatórias chama esses predadores perfurantes de BALOs, sigla que significa organismo semelhante ao Bdellovibrio (pelo menos um tipo de Bdellovibrio — chamado Bdellovibrio exovorus — optou em vez disso pelo caminho do vampiro).

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Como um todo, as bactérias predatórias são “máquinas de matar muito eficientes", disse o microbiólogo Daniel Kadouri, da Universidade Rutgers, que estuda bactérias predatórias desde 2003. “Quando as vi pela primeira vez, pensei, ‘São os organismos mais atraentes que já vi’.”

Tratamento vivo

Quando uma bactéria predatória encontra sua presa, há pouco que possa detê-la. Enquanto antibióticos e bacteriófagos tendem a atacar partes muito específicas da anatomia de uma bactéria, as bactérias predatórias são agentes da gulodice: o micróbio não pode desenvolver resistência a ela, assim como uma lebre não desenvolve resistência a um lobo.

Mesmo antes de se prenderem à presa, as BALOs são adversários formidáveis, capazes de sentidos químicos que lhes permitem “farejar” a presa e persegui-la, deslocando-se para frente graças à rotação de uma cauda semelhante a um saca-rolhas chamada flagelo. “Elas conseguem nadar uma distância igual a 100 vezes o comprimento do corpo em um segundo", disse Kadouri. “Guardadas as devidas proporções, são mais rápidas do que uma onça.”

Em estudos com animais, as bactérias predatórias se mostraram promissoras no combate a germes que provocam doenças como a Salmonella e a Yersinia pestis, causadora da peste. Kadouri e Nancy Connell, geneticista microbial do Centro de Segurança da Saúde da Universidade Johns Hopkins, usaram doses de Bdellovibrios nos pulmões de ratos e camundongos e observaram as bactérias devorarem a maior parte da presa à sua disposição. Testes com galinhas e peixes também apresentaram resultados encorajadores.

“Temos que começar a pensar em abordagens mais holísticas", disse Kadouri. “É mais uma ferramenta para o nosso arsenal.” Com estudos mais aprofundados, as bactérias predatórias podem um dia mudar “nossa forma de encarar os tratamentos básicos", disse Saaki, que espera trazer medicamentos mais acessíveis para o seu país natal, Suriname.

Restaurando a ordem

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As bactérias predatórias não são exclusivamente armas de destruição. Na Alemanha, Julia está trabalhando em uma série de projetos que destacam as habilidades pacíficas desses micróbios na complexa comunidade de bactérias que habita o intestino.

Algumas evidências indicam que “humanos saudáveis costumam apresentar bactérias predatórias na composição do seu bioma", disse ela. Pouco se sabe a respeito do papel desempenhado por elas, acrescentou a cientista. Mas é provável que elas mantenham a ordem no intestino, impedindo que um tipo qualquer de bactéria se multiplique descontroladamente.

O trabalho de Julia indica que pessoas com distúrbios gastrointestinais como a doença de Crohn podem ter perdido esse delicado equilíbrio. A reintrodução das predadoras nesse ecossistema pode ajudar a restaurá-lo. “No meu mundo ideal, poderíamos usar as BALOs como uma espécie de probiótico", disse ela.

Uma dinâmica semelhante é provavelmente verdadeira na natureza, onde Henry Williams, da Universidade Florida A&M, investiu a maior parte de sua atenção. Até pequenas quantidades de bactérias predatórias podem rearranjar completamente a composição bacteriana de uma amostra de água marinha. “Estão sempre presentes, controlando a população de algumas bactérias", disse ele.

Muitos manuais de microbiologia contém referências à importância de predadores como bacteriófagos e protistas, grupo de micróbios geralmente unicelulares cujas células se assemelham às dos animais. Mas as bactérias predatórias foram em boa medida excluídas, por mais que pareçam ser no mínimo tão eficazes quando estes no combate às suas presas. Talvez isso faça desses micróbios alguns dos azarões menos visíveis do mundo. “As pessoas têm dificuldade em levá-los a sério", disse Williams. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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