Das engenhocas inúteis

Eu entendo de coisas inúteis. Aliás, eu só entendo de coisas inúteis. Talvez por ter passado pelo menos 75% de minha vida entretido com afazeres absolutamente dispensáveis.

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Por Ivan Lessa
Atualização:

Eu entendo de coisas inúteis. Aliás, eu só entendo de coisas inúteis. Talvez por ter passado pelo menos 75% de minha vida entretido com afazeres absolutamente dispensáveis. Mesmo assim, os outros 25% não foram lá grande coisa. Limito-me a dar início a uma listinha de coisas dispensáveis e que a humanidade, em sua debilidade mental, cisma de levar para casa. Ou então, o que é um lugar-comum, mas não menos verdade, que as pessoas normalmente dão de presente de casamento. Por aqui, o "set" de fondue é o presente inútil, por excelência. Virou piada. Pena. Fondue é gostoso, mas é melhor quando o pedaço de pão boiando no queijo escaldante é pescado num restaurantezinho em Paris "que só a gente conhece". Gente que fala em restaurantezinho em Paris que só eles conhecem, é uma forma bípede e falante de inutilidade. Matando a cobra Começo com a minha casa e não com a casa do digníssimo leitor. Fujo assim da praxe velhaca dos jornalistas (como tem "jornalista" a ser aspeado neste mundo de Deus. Não serão todos também engenhos mais do que beirando o inútil?) de dar parceria a quem os lê insultando os hábitos e a maneira de ser, ou encarar as coisas, de seus fregueses. Disse que começava com a minha casa, então lá vou eu: cobra morta, pau à mostra. Na geladeira lá do flat, que não é das maiores do mundo, uma boa parte da prateleira onde deveriam ficar, supostamente, as garrafas de leite e de suco de laranja ou uva, minha mulher cismou de botar, há alguns anos, aquilo que eu chamo de "máquina de fazer água". Trata-se de um recipiente plástico transparente enorme que, de tempos em tempos, tem de sofrer mudança de filtro. O filtro custa caro. A água é da bica. Cumpre esclarecer, neste ponto, que a água de bica de Londres é potável, conforme diversas autoridades abalizadas não se cansam de esclarecer. Isso porque volta e meia os - olha eles aí de novo - jornalistas publicam matéria criticando o excesso e a mania compulsiva de se comprar e beber água da venda da esquina ou do supermercado mais adiante - a preços exorbitantes, claro, e se alegando proveniente de lugares exóticos onde o precioso líquido é, além de hiper-valioso, melhor para nossa saúde do que todas as vitaminas de A a Z (vitamina parece que também é dispensável. Esse caso, no entanto, fica para outro dia). Fato é que o vasilhame, com a suposta água benéfica para o organismo e deliciosa para o paladar, ocupa, a meu ver e sentir, um espaço indevido na pobre da geladeira, lá ficando com um jeitão idiota gelando e gelando. Em vão, para nada, besteira. Meus sucos e refrigerantes são obrigados a passar para a primeira prateleira de cima, debaixo do freezer, onde ficam deitados, em posição incômoda para tudo e todos, principalmente para mim. Além do mais, volta e meia derramam, emporcalham a geladeira toda. Só pode ser de birra e mágoa, por terem sido expulsos do mais que devido lugar. Pior é que a tal da "máquina de fazer água", por ocupar muito espaço e ser mais sem jeito do que um zagueiro zarolho da várzea, impede sutilmente a geladeira de fechar por completo. Resultado: agora que o calor chegou com o frêmito apressado e bufante do retardatário, eu vou lá para pegar meu suquinho ou iogurte e está tudo beirando o morno, na bica - ah, a bica e sua água! - de estragar, perder o prazo de validade e ter de ser tudo posto no lixo. Tremendo desperdício. No primeiro dia em que der pé, eu atacarei de novo com outros engenhos estupidamente estúpidos. Feito escova de dente elétrica espalhadora de água bucal e, sempre na base da eletricidade, lixa de unhas. Nhô, sim. Lixa de unhas elétrica. Juro que tem. Se eu bobear, acaba aparecendo lá em casa. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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